A história dos cães e gatos: quem domesticou quem?

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Você já olhou para o seu animal de 
estimação e se perguntou: de onde ele veio?  Poodles e pugs não ocorrem no cerrado, na 
Amazônia e nem em nenhum bioma naturalmente, eles só existem porque são cuidados e 
porque foram criados por nós, humanos.  Isso é verdade pra todas as raças de cachorros 
e gatos domésticos, moldados por mão humana através da seleção artificial ou criação.
Apesar de todas as diferenças entre as raças, elas permanecem sendo uma só espécie, 
porque mais de 99% do seu DNA é idêntico. Mas esse mesmo DNA também é praticamente idêntico 
ao dos lobos cinzentos do hemisfério norte. Então como esses predadores de topo, altamente 
sociais e caçadores exímios se tornaram isso? Mas além disso, como uma amizade tão 
profunda se consolidou entre humanos e animais carnívoros como os cães e os gatos?
De onde vem as mais diferentes raças? Como isso começou?
Quanto tempo isso faz?  Como essa relação moldou a evolução humana?
E afinal de contas, porque nos cuidamos e nos amamos tanto até hoje?
Hoje, tentaremos responder   essas perguntas com o pouco que 
sabemos sobre a origem enigmática da amizade entre os humanos e 
seus principais pets carnívoros.  Vamos viajar no tempo até a última era do 
gelo e encontrar um mundo muito diferente para entender como tudo isso começou, numa 
viagem que com certeza vai surpreender a amantes de cães e de gatos.
Se prepare para nunca mais   ver seu animal doméstico da mesma 
forma, essa é a evolução dos pets. Cães e gatos estão presentes onde 
quer que humanos também estejam.  No caso dos cães, eles têm 
nos seguido há algum tempo, certamente mais do que trinta mil e possivelmente 
mais de cinquenta mil anos nos fazendo companhia. Os cães descendem do lobo cinzento, 
Canis lupus, uma espécie presente nos   ambientes temperados do hemisfério Norte.
Hoje, os cachorros têm um status taxonômico ambíguo, sendo muitas vezes classificados 
como uma subespécie de lobo cinzento,   Canis lupus familiaris, e as vezes como 
uma espécie nova, Canis familiaris. Independente disso, todas as raças que 
existem hoje pertencem a mesma espécie. Entre elas, estão cães adaptados para 
o gelo, puxando trenós e dispondo de   uma resistência física imensa, mas 
também cães caçadores e farejadores, cães guia para deficientes visuais, guarda 
costas, vigias e acima de tudo, companheiros. Talvez não existam outras duas espécies tão 
diferentes entre si que se entendem tão bem e se comunicam tanto quanto humanos e cachorros.
Eles são capazes de distinguir palavras e atribuir significados a elas, sejam 
objetos, comandos ou sensações.  Estudos com cães treinados para se comunicar 
tocando em botões que reproduzem palavras mostraram que eles são capazes até mesmo de 
compor frases com significados elaborados   com esse recurso, indicando fome, por 
exemplo, ou exatamente onde querem ir passear e com que brinquedo querem brincar.
Significa que eles literalmente só não falam   porque não conseguem, mas são capazes de entender 
uma boa parte do que queremos dizer quando nos comunicamos com eles, principalmente 
pela voz, entonação e linguagem corporal. Já os gatos costumam engajar menos com nossas 
bobeiras e são notoriamente mais difíceis de treinar, com uma personalidade 
mais teimosa e independente.  Mas isso não significa que eles não sejam 
inteligentes e não entendam o que dizemos, eles só não se sentem obrigados a responder.
Claro que eles não abstraem nem fazem juízos de valor, mas são sim capazes de identificar 
padrões, intencionalidades e sentimentos. Também não significa que eles não possam 
ser extremamente carentes, afetuosos,   amorosos e comunicativos, de sua própria maneira. Talvez por isso haja essa rivalidade entre 
pessoas de cachorros e pessoas de gatos,   alguns de nós nos identificamos mais 
com um deles e menos com o outro. Porque apesar de serem dois carnívoros que de 
alguma forma acabaram dentro das nossas casas,   eles são muito diferentes.
Gatos são fisicamente mais maleáveis e articulados, transitando com 
facilidade por cima dos nossos móveis, coisa que raramente vemos cães fazendo, já 
que eles se sentem mais seguros no chão.  Como vamos descobrir, isso diz muito 
sobre a história da evolução de cada um. Os gatos domésticos, Felis catus, descendem de uma 
espécie de gato selvagem muito parecida com eles, que hoje é nativa da África, e oriente 
médio, mas que já ocupou uma área muito   maior no passado, Felis silvestris.
Mas esse processo de domesticação foi muito mais recente do que o dos 
cães, cerca de dez mil anos atrás,   coincidindo com o início da revolução agrícola 
e a passagem do Pleistoceno para o Holoceno. Mas para entender como a evolução moldou 
essas duas linhagens, precisamos dar um salto gigantesco no tempo, de mais de 23 milhões 
de anos, na passagem do Paleogeno para o Neogeno. Durante o paleogeno, o primeiro 
período da era dos mamíferos,   o planeta ainda se parecia muito com o mundo 
que os dinossauros viveram, com um clima quente, úmido e com vegetação densa em boa parte do globo.
Mas cerca de 23 milhões de anos atrás, as condições começaram a mudar na direção de um 
planeta mais seco, mais frio e mais desértico, com extensos campos abertos dominados 
por gramados: as savanas e tundras. Acompanhando as mudanças no clima e na 
fitofisionomia dos ecossistemas em que vivam,   as comunidades animais se atualizaram, com 
a extinção de muitas das formas dominantes, bem como o estabelecimento e diversificação 
da maioria dos grupos modernos de mamíferos.  Entre eles, os animais da ordem carnivora, 
que abarca cerca de 280 espécies viventes. Uma confusão muito comum é entre 
os termos carnívoro e carnivora.  Carnívoro é o termo em português para um 
animal que se alimenta de carne, já carnivora é o nome em latim de um grupo biológico 
que inclui os caniformes e os feliformes. Por isso podemos dizer que os canivoranos 
são em sua maioria carnívoros,   e que os animais carnívoros mais dominantes 
atualmente são os mamíferos carnivoranos. Dentre os caniformes estão os canídeos, 
como lobos, raposas e cachorros, mas também os arctoideos, como ursos, guaxinins, quatis, 
mustelídeos e surpreendentemente, os pinípedes, alguns dos mamíferos aquáticos mais bem sucedidos 
da atualidade, como focas e elefantes marinhos. Uma das principais diferenças entre canídeos e 
arctoideos é que arctoideos andam sobre a palma da mão, tem dedos mais articulados e escápulas 
mais livres, sendo surpreendentemente capazes de andar sob dois pés confortavelmente e 
os fazendo bons escaladores e exploradores de recursos com suas mãos multifuncionais.
Já os canídeos são digitígrados, ou seja, andam sob os dedos e não tocam a palma da mão 
no chão, como fazem os arctóideos plantígrados. Eles são quadrupedes muito mais especializados 
para a vida em ambientes abertos, como os imensos gramados no amanhecer do Neógeno.
Eles perderam em mobilidade tridimensional, mas ganharam em velocidade e 
eficiência, se tornando perseguidores   hábeis de herbívoros por longas distâncias.
Curiosamente, uma linhagem irmã dos caniformes, os amphicyonideos, carregavam características 
intermediárias entre canídeos e arctoideos, com seus focinhos compridos, 
postura plantígrada e caudas longas.  Isso demonstra que talvez o ancestral 
comum entre esses dois grupos possa ter sido um animal muito parecido com Amphicyon, 
e que desde a separação de suas linhagens, eles adotaram estratégias evolutivas diferentes.
Já do outro lado da ordem carnivora, estão os feliformes, como nossos gatos, 
mas também leões, tigres, hienas e civetas. Eles compartilham com os caniformes 
a presença de dentes carniciais,   adaptados para cortar carne dos ossos.
Mas diferente deles, seus esqueletos são mais elásticos e articulados, sendo 
capazes de atravessar buracos pequenos,   se equilibrar em situações extremas e usar a 
coluna como uma mola para pular várias vezes o próprio tamanho em distância.
Eles são geralmente animais muito   mais adaptados para ambientes fechados, se 
deslocando com facilidade entre as árvores, com a ajuda de seus rabos muito mais 
controláveis do que o dos caniformes. A mobilidade do rabo é um dos elementos que 
tornam os feliformes exímios equilibristas,   sempre prontos pra cair de pé.
Outra característica única dos   felinos é a capacidade de retrair suas garras, 
poupando-as do desgaste e mantendo-as afiadas. O ancestral comum entre os feliformes e os 
caniformes provavelmente se parecia com uma Genetta, um animal generalista de médio porte.
Ele viveu em uma época dominada por uma   variedade de outros carnívoros.
Talvez um dos mais estranhos sejam os entelodontes, um grupo de carnívoros com cascos 
de grande porte e cabeças colossais que ganharam o apelido estiloso e imponente de porcos do inferno.
Na América do Sul, que permaneceu ilhada até cerca de 3 milhões de anos atrás, aves do 
terror de mais de dois metros de altura,   os Phorusarquideos, dominavam a paisagem, 
ao lado de predadores como Thylacosmilus, o dente de sabre marsupial e crocodilos terrestres 
gigantes, como o assustador Barinasuchus. No velho mundo, a competição dos carnivoranos 
ancestrais vinha de dois grupos muito próximos deles, os Oxyaenideos e os Hyenodontes.
Esses foram dois grupos de carnívoros muito diversos e dominantes desde o início 
da era dos mamíferos, mas que não deixaram   descendentes até os dias atuais.
Os hyenodontes eram animais grandes, com dentes grossos e mordidas 
poderosas, capazes de esmagar ossos.  Esses animais estavam especializados para caçar 
a megafauna do paleogeno e do início do Neógeno, reservando aos tímidos verdadeiros carnivoranos, 
um papel secundário e noturno da cadeia alimentar. Mas com as mudanças climáticas trazidas pelo 
neogeno, eles lentamente extinguiram as linhagens arcaicas de carnívoros, quando suas habilidades 
genéricas e tamanho moderado foram recompensados em tempos de mudanças bruscas.
Hoje, existem espécies de   caniformes e feliformes nativas de todos os 
continentes, com a exceção óbvia da Antártida. Na África e Ásia, os felinos ocuparam os nichos 
de maiores e mais pesados predadores, Já no Norte da Eurásia e América do Norte, foram os 
caniformes como ursos e lobos que se estabeleceram como os principais predadores.
Eles incluem o urso polar, que é   o carnívoro terrestre mais pesado atualmente, 
adaptado para a vida semi-aquática no oceano ártico, com uma dieta tão incrível quanto 
insana, especializada em mamíferos marinhos. O último continente a ser colonizados pelos 
mamíferos carnivoranos foi a América do Sul, durante o grande intercambio americano, 
entre 5-3 milhões de anos atrás.  Isso porque durante esse tempo, a América 
do Sul deixava de ser um continente isolado por mais de 100 milhões de anos, onde 
a evolução produziu uma fauna única,   uma era dos mamíferos totalmente paralela.
A esmagadora parte dessa diversidade desapareceu quando o ístimo do Panamá se formou, conectando 
as Américas e possibilitando um intercambio faunístico que mudou para sempre a 
história da fauna desses continentes.  Preguiças gigantes, aves do terror, 
marsupiais e tatus ocuparam a América do norte por mais de dois milhões de anos 
antes das maiores espécies se extinguirem lá. Foi nesse momento que carnívoros 
ancestrais das onças e lobos guarás,   por exemplo, chegaram aqui, numa invasão 
de dezenas de linhagens ao mesmo tempo. Em pouco tempo, elas erradicaram boa parte 
da fauna originária e se estabeleceram como os principais predadores desses ambientes, 
como os tigres dentes de sabre e os antigos canídeos sul americanos como o Protocyon, que 
não deixam descendentes até o dia de hoje. Aqui, eles encontraram um novo ambiente 
e certamente competiram pelos mesmos recursos durante milhões de anos 
antes da chegada dos seres humanos. Muito antes de estabelecerem uma relação 
inseparável conosco, a natureza já estava moldando grande parte das características que 
tornaram nossa amizade com os lobos, possível. Eles são predadores de topo que vivem e 
caçam em grupo e que cuja estratégia de   sobrevivência depende intimamente da sua 
estrutura social e hierarquia complexa. Isso requer uma inteligência social extremamente 
sofisticada, fazendo deles alguns dos mamíferos mais inteligentes que existem atualmente.
Eles vivem em alcateias que são compostas   de um casal monogâmico dominante 
e várias gerações de filhotes, jovens, subadultos e adultos, que caçam juntos 
prioritariamente animais grandes e com cascos. Todas as suas habilidades sociais foram 
extremamente úteis quando se abriu uma grande   oportunidade ecológica ao lado dos humanos.
Elas permitiram que nós nos entendêssemos e nos apegássemos em um ambiente em 
que éramos inimigos naturalmente.  Mas elas também foram fundamentais para 
estabelecer os lobos como os principais e mais dominantes predadores dos ambientes temperados 
e glaciais do hemisfério norte do planeta. Na medida em que nos expandíamos para leste e para 
o norte, encontrávamos ambientes dominados pelos lobos, que por muito tempo, representavam um dos 
muitos perigos desse novo mundo gelado e hostil. Por um grande período, eles podem ter sido 
nossos predadores, da mesma forma que nós éramos um perigo e competidores diretos deles.
Mas talvez um desafio em comum tenha facilitado a nossa aliança: um evento climático 
extremo chamado último máximo glacial.  Ao redor de 26 mil anos atrás, atingimos o último 
pico da era do gelo, com o avanço das geleiras, perda de ambientes florestais, retração dos 
oceanos em mais de 120 metros abaixo do nível atual e condições mais frias e secas globalmente.
Esse evento coincide vagamente com as primeiras evidências de que lobos 
e humanos estavam andando juntos.  Alguns estudos sugerem que foi na Sibéria que 
a principal população de cachorros viventes se originou, durante o último máximo glacial, 
quando populações de humanos e lobos ficaram isoladas com a expansão das geleiras e as rápidas 
mudanças climáticas, em um período de escassez. E essa amizade pode ter sido 
um processo multirregional,   acontecendo algumas vezes independentemente em 
diferentes lugares do mundo, mas principalmente no que hoje é a china e o oriente médio.
Mas não foi só isso que contribui para confundir a história caótica da origem dos cachorros, já 
que o processo de criação de raças implica numa imensa perda de diversidade genética da parte dos 
cachorros, e da parte dos lobos, eles acabaram de passar por um intenso evento de extinção, com uma 
boa parte da sua população e consequentemente, de sua diversidade genética sendo aniquilada 
com as alterações humanas em seus ambientes. Isso faz com que as semelhanças e diferenças 
genéticas atuais entre cachorros e lobos não reflitam com fidelidade sua relação de 
parentesco, originada em um passado recente. Já os gatos que deram origem aos nossos 
gatos domésticos ocupavam um papel muito   mais humilde nos ambientes que existiam.
O gato selvagem africano, apesar do nome, não habitava apenas a África, mas também 
partes do oriente médio e mediterrâneo,   quando essas regiões eram menos desérticas.
Ele é um animal pequeno e solitário, um caçador oportunista que mira em presas pequenas, como 
lagartos, anfíbios, pássaros e pequenos mamíferos. Diferentemente dos lobos do norte, eles 
estavam adaptados para ambientes tropicas quentes e secos, como as savanas.
Sua anatomia flexível possibilita um   deslocamento tridimensional impressionante, em uma 
imensa variedade de ambientes, mas principalmente nas árvores, onde se sentem mais seguros.
Já suas patas acolchoadas e silenciosas são parte importante da sua estratégia de caça, que 
se aproxima lentamente e de forma imperceptível das presas, dando a emboscada em um golpe só.
Apesar de poderem correr rápido, eles o fazem mais defensivamente, já que originalmente sua 
estratégia de caça não envolve muita perseguição e sim muito foco, precisão e delicadeza.
Em sua maior parte, os gatos selvagens são praticamente idênticos aos 
gatos domésticos e poderiam   facilmente ser confundidos com gatos comuns.
As maiores diferenças são comportamentais, sendo muito mais tímidos e agressivos com os humanos 
do que os gatos que moram hoje em nossas casas. Apesar de eles não serem os predadores de 
topo em seus ecossistemas, outros felinos   ocupam esse nicho, principalmente os do gênero 
Panthera, que são hoje os principais predadores na África, América e sudeste asiático.
Na África, os leões são os predadores mais   abundantes e dominantes, e diferente dos 
gatos que deram origem aos nossos gatos, eles são gigantes, com mais de 250kg, e 
altamente sociais, com estruturas hierárquicas, dimorfismo sexual acentuado e rituais complexos.
Eles se adaptaram a uma vida em bandos para sobreviver na savana caçando principalmente 
animais com cascos, de forma semelhante aos lobos no hemisfério norte.
Nesse cenário, outros   caniformes e feliformes ocupam nichos de 
predadores de animais menores e carniceiros, com apenas alguns animais sendo capazes de 
competir de alguma forma com os leões, como   as hienas, outro feliforme que vive em bandos.
Quando gatos selvagens começaram a se aproveitar dos ambientes antropizados, eles já estavam 
muito bem estabelecidos enquanto predadores   oportunistas e generalistas de pequeno porte, 
sendo alguns dos animais mais comuns em seu nicho ecológico e tendo populações grandes e 
amplamente distribuídas no crescente fértil. Embora as evidências apontem com segurança pra uma 
idade de cerca de 30 mil anos para a generalização da nossa parceria com os cachorros, ela pode 
ser muito mais antiga, tendo demorado muitos milênios para deixar de ser uma particularidade de 
alguns grupos isolados e passar a ser algo comum. Começando cerca de 70 mil anos atrás, humanos 
passaram pelo que chamamos de explosão cognitiva, em que a cultura se torna cada vez 
mais complexa e mais simbólica,   como mostram esculturas e pinturas rupestres 
que se tornaram mais comuns durante essa época. Provavelmente reflexo de uma sofisticação da 
nossa habilidade mais fundamental: a linguagem. Com mais palavras e conceitos, pudemos construir 
um mundo abstrato, contar histórias, pensar sobre o passado e o futuro além de nos emocionarmos e 
planejarmos trabalhos cada vez mais complexos. Essa nossa explosão artística e 
cultural pode parecer lenta, mas é   um processo que se estende até o dia de hoje.
É possível que as populações mais sociáveis, comunicativas e avançadas teconologicamente 
tenham sido aquelas menos agressivas, e se isso for verdade, pode ser que os humanos 
tenham de alguma forma se auto-domesticado, com a sociabilidade sendo um fator fundamental para a 
passagem da cultura para as próximas gerações e a propagação de ideias e tecnologias.
Não surpreende que esses humanos   mais amigáveis tenham sido os que 
eventualmente, conquistaram os lobos. Os humanos mais agressivos se tornariam 
mais isolados e acabariam empobrecendo   culturalmente e tecnologicamente, sendo superados 
competitivamente pelos humanos mais sociáveis. Estudos que focam no aspecto cultural da relação 
entre humanos e cães durante o pleistoceno tem evidências de que nós enterrávamos cães mortos, 
revelando uma possível relação espiritual entre cães e humanos, que envolvia um ritual funerário.
A partir desses rituais, acabamos tendo a possibilidade de conhecer alguns dos primeiros 
cães, como um indivíduo com 33 mil anos de idade recuperado nas montanhas Altai na Sibéria, um 
dos ambientes mais inóspitos do planeta Terra. Isso porque ao enterrar os 
esqueletos, as possibilidades   de preservação aumentam enormemente.
Uma carcaça a céu aberto é rapidamente desarticulada, fragmentada e decomposta 
pelos animais e as forças da natureza. O que a genética e a zooarqueologia podem nos 
dizer sobre a evolução dos cachorros é que a partir de um certo ponto, nos dispersamos juntos.
Os cães podem ter acompanhado os primeiros humanos que habitaram o continente norte 
americano, atravessando o estreito de Bering,   quando ainda existia uma ponte de terra entre Ásia 
e América do Norte, cerca de 20 mil anos atrás Eles também enfrentaram jornadas épicas e 
arriscadas, sendo levados nas primeiras grandes navegações promovidas pela humanidade, enquanto 
conquistávamos as milhares de ilhas na Oceania e possivelmente chegando até a América do Sul.
Até 5 mil anos atrás, cães e humanos, que já tinham uma relação de mais 
de 30 mil anos, já ocupavam todos   os continentes do planeta, exceto a Antártida.
Os egípcios durante muito tempo tiveram o hábito conveniente para nós, no futuro, de mumificar 
e embalsamar alguns de seus pets mais amados. Não somente isso, como eles estavam presentes 
fortemente em suas gravuras e crenças, com Deuses como Annubis, sendo representados 
como quimeras entre humanos e cães. Seus corpos e partes de seus corpos 
podem ter sido usados como oferendas   ou mensageiros para o mundo transcendental, o 
que significa que nossa relação com eles não era meramente utilitária, mas envolvia 
uma fortíssima adoração e simbolismo. As tarefas domésticas são as tarefas de casa.
Domesticar significa trazer para   dentro de casa, em um sentido literal.
Mas não foi exatamente isso que aconteceu com os lobos e os humanos, já que nossa relação 
começou antes da existência das casas, quando éramos caçadores-coletores, no fim do pleistoceno.
Eles foram a única espécie a coevoluir conosco durante nossa fase pré-agrícola, 
enquanto ainda só caçávamos animais   e coletávamos nozes, raízes e frutas.
Não só os lobos foram os primeiros animais domesticados pelos humanos, como podem 
ter sido os únicos durante o pleistoceno,   abrindo caminho para a domesticação de centenas 
de espécies depois deles, mas nenhuma como eles. Cada um de nós que tem um cachorro ou um 
gato em casa, convive com um exemplo muito   didático e evidente do poder da evolução 
e dos resultados da seleção artificial. Eles demonstram que é possível acumular pequenas 
diferenças por centenas de gerações até criar linhagens comicamente diferentes umas das outras.
Mas não só a aparência foi selecionada, e talvez ela nem seja a parte mais 
importante de toda essa seleção.  A forma com que fomos capazes de selecionar 
traços de suas personalidades e comportamento são ainda mais impressionantes!
Temos cães de alarme, cães pastores,   caçadores, nadadores, companheiros, mas todos 
eles têm algo em comum: uma submissão à vontade humana e um apego imenso a nós.
Mas não foram só eles que em algum   momento aprenderam a nos amar, 
porque o amor foi recíproco. Não se tem nenhuma notícia de outras duas espécies 
de animais hipersociais que simplesmente decidiram que era muito legal viver juntas e se uniram 
em uma relação simbiótica baseada no afeto. Claro, no começo, eles tinham 
muito mais utilidades, mas vamos   ser sinceros? Hoje em dia, é pela companhia.
Porque nós continuamos alimentando-os dentro de nossas casas mesmo muito depois do fim 
da sua utilidade pra maior parte dos donos? Como começou essa amizade e como ela 
pode ter beneficiado ambas as partes? Pensamos que a domesticação deve ter 
levado centenas ou milhares de gerações,   mas talvez estejamos subestimando 
severamente o poder da evolução. Prova disso é um experimento com uma 
linhagem de raposas prateadas na Sibéria,   que começou em 1959 e dura 
até hoje, 40 gerações depois. Elas foram selecionadas pela sua docilidade 
e sociabilidade com seres humanos, geração após geração, mas curiosamente, elas acabaram 
com uma série de características em comum com os cachorros, entre elas o comportamento 
mais infantilizado, focinhos mais curtos, manchas brancas na pelagem, rabos enrolados 
e que abanam, olhos grandes e orelhas caídas. Esse conjunto de características que aparecem 
quando a docilidade é selecionada ficou   conhecido como síndrome da domesticação.
Isso é porque na natureza, as coisas não existem isoladas, e essas características 
aparecem no que chamamos de “efeito carona”. Basicamente, o gene que controla a docilidade 
certamente não controla apenas a docilidade, mas afeta outros elementos do desenvolvimento 
do animal, que são selecionados pegando   “carona” genética na característica que 
tem uma forte pressão seletiva positiva. Tanto para os cachorros quanto para os gatos, 
dois modelos que explicam o início da domesticação disputam: o da domesticação induzida pelos 
seres humanos e o da auto-domesticação.  Na primeira, foram os seres humanos que 
criaram inicialmente os filhotes de lobos e gatos selvagens para acompanha-los, 
ajuda-los na caça, ficando alertas,   ou quaisquer utilidades que eles pudessem ter.
Na segunda, o oportunismo de seguir os humanos se aproveitando de seus restos e do calor das 
suas fogueiras pode ter aproximado lentamente populações de cães para os acampamentos humanos 
e aumentando a tolerância deles a nossa presença. Outros, explicam a aproximação entre 
humanos e lobos como um processo de fases.  Na fase 1, a expansão humana 
cria nichos antropogênicos, e os lobos com menos medo dos humanos 
aprenderam a nos seguir de longe se   aproveitando dos nossos restos, um novo recurso 
ecológico disponível nos ambientes antropizados, ou seja, alterados pelos humanos.
Na fase 2, os lobos antropizados   começam a ser capturados e criados 
juntos com os humanos desde filhotes, entrando permanentemente em sua estrutura social 
e os acompanhando de perto em um só bando. A partir daí, os parceiros sexuais dos lobos 
passaram a ser escolhidos pelos humanos,   e os filhotes mais agressivos, sacrificados, 
selecionando negativamente a agressividade e positivamente a docilidade.
Assim, os cachorros descendem dos   filhos mais dóceis, dos filhos mais dóceis 
dos filhos mais dóceis, milhares de vezes, dos primeiros lobos a conviverem com humanos.
De qualquer maneira, humanos e lobos tinham algo em comum: eles eram os predadores 
de topo em seus ecossistemas,   competidores pelas mesmas presas raras e 
cada vez mais escassas no pico da glaciação. A hiperssociabilidade de humanos 
e lobos atravessou uma fronteira   fundamental: a entre espécies.
De alguma forma, humanos e lobos foram entendendo que juntos, eles eram mais fortes e 
que a companhia um do outro fazia bem para ambos. Ao longo dos milênios, nossa relação moldou os 
lobos em uma espécie nova, mas nós também mudamos. Não sabemos exatamente como, mas é 
possível que a presença dos lobos nas   sociedades tenha impactado a evolução humana, 
principalmente no comportamento e linguagem. Cachorros se tornaram mais expressivos 
e mais sensíveis as emoções humanas,   e talvez, vice-versa.
O amor, o apego a empatia e o afeto que sentimos um pelo outro 
pode ter sido uma das características   moldadas nesse processo co-evolutivo.
Talvez tenhamos co-evoluido nos co-domesticando, em um processo que remunerava a 
cada geração, os humanos e cães   mais amigáveis, confiantes e comunicativos.
Afinal, ao mesmo tempo que as casas e primeiras ocupações permanentes eram uma novidade para os 
nossos pets, elas eram uma novidade para nós. Nossas mentes, de muitas maneiras 
foram moldadas pela nossa relação   com os cachorros nos últimos milênios.
E nossas capacidades de nos apegarmos e nos comunicarmos com eles, podem ter sido as 
mesmas capacidades úteis entre nós mesmos. Pela primeira vez, nossa espécie não 
vagava mais sozinha por esse mundo.  Apesar dos vestígios mais antigos de 
cachorros terem entre 33-36 mil anos, não foi até 15 mil anos atrás que os 
cachorros geneticamente modernos aparecem.  Pode ser que o modo de vida caçador coletor 
dos seres humanos, sem casas ou ocupações permanentes tenha permitido um fluxo genético 
constante entre os nossos lobos e os lobos selvagens durante mais de 20 mil anos.
No entanto, isso não impedia humanos e cachorros primitivos de trabalharem 
juntos, aumentando significativamente a   eficiência da caça para ambas as espécies.
Tudo isso nos leva a crer que a criação e domesticação dos cachorros foi uma parceria 
induzida pelos humanos, embora populações mais dóceis de lobos possam ter facilitado o processo.
Também temos evidências genéticas que a população de lobos que deu origem aos cachorros 
já não existe mais, tendo sido extinta   em algum momento nos últimos 15 mil anos.
Isso não significa que a espécie que originou eles não existe mais, porque espécies são compostas de 
vários grupos ou populações, que podem variar em forma ou conteúdo genético, mas ainda mantém 
algum fluxo gênico com outras populações. Ou seja, muito provavelmente a domesticação 
dos cães foi totalmente intencional,   o que significa que pelo menos algum entendimento, 
mesmo que fosse uma explicação transcendental e sobrenatural, os humanos já tinham sobre 
a hereditariedade das características e   a evolução biológica pelo menos nesse caso.
Se não estivéssemos selecionando os cruzamentos e os filhotes de cada ninhada durante dezenas 
de milhares de anos, a história da evolução dos cachorros poderia ter sido bem diferente.
Mas com os gatos, a história foi outra. Entre 11 e 12 mil anos atrás, 
na passagem do Pleistoceno para o Holoceno, os seres humanos aprenderam 
algo revolucionário: a domesticar plantas.  A agricultura de vegetais, frutas, raízes e 
grãos diversos foi inventada na região chamada de crescente fértil, que nessa época, era muito 
menos desértica e muito mais fértil do que hoje. Toda a região do Saara e do Oriente médio estava 
passando por uma de suas muitas fases verdes, em que mudanças sutis na orbita da terra 
trazem chuvas para essa região, expandindo   imensamente a extensão da savana africana.
Existem pinturas rupestres no meio do deserto do Saara que retraram lagos imensos, 
rios, hipopótamos, girafas, leões, dentre muitos outros animais que já não 
existem na região há mais de 5 mil anos. A agricultura foi um grande esforço de 
seleção, cujo poder moldou quase todas as   plantas que nos alimentamos atualmente a partir 
de variedades selvagens bem menos apetitosas. Mas ela também impôs a necessidade do 
estoque de grãos e de culturas extensas,   que não raramente atraiam pragas.
Uma fonte fácil de alimento para pássaros, insetos e pequenos mamíferos.
Se deixados sem qualquer tipo de controle, eles são capazes de reduzir uma plantação a nada.
É por isso que nesses ambientes, moldados pela ação humana, a presença de pequenos 
predadores que controlem populações de   pragas como ratos, era muito bem-vinda.
O gato selvagem africano aprendeu que próximo dos assentamentos humanos, sempre 
haveriam presas abundantes, ao mesmo tempo   que os humanos aprenderam que os gatos selvagens 
eram uma presença benéfica em suas plantações. Isso pode explicar a adoração das civilizações 
egípcias, por exemplo, pela figura dos gatos, mais de 4 mil anos atrás, configurando a 
evidência mais antiga de gatos domésticos. Mas os gatos selvagens já haviam sido 
transportados por seres humanos em suas   embarcações há pelo menos 9500 anos, para 
a ilha de Cyprus, no mar mediterrâneo, onde antes da dispersão induzida pelos seres 
humanos, não se tem registros de gatos nativos. Evidência que de fato os gatos nos acompanharam 
e tinham os benefícios de sua companhia bem conhecidos desde o início da revolução agrícola.
Mas gatos selvagens são animais solitários, passando suas vidas sozinhos e 
caçando sozinhos, muito diferente   dos lobos que originaram os cachorros.
O que faz da domesticação dos gatos um feito mais improvável e mais impressionante 
do que a domesticação dos cachorros.  Por muito tempo, humanos e gatos coabitaram os 
mesmos ambientes, se beneficiando uns dos outros, estabelecendo uma relação ecológica comensal em 
sua primeira fase, que durou alguns milênios. Isso significa que a domesticação de fato, 
dos gatos, começou há muito menos tempo, sendo quase 10x mais recente do que a domesticação 
dos cães, fazendo deles, ainda supreendentemente próximos comportamentalmente aos gatos selvagens.
Na medida em que os antromas, ou seja, os biomas criados pelos humanos iam se espalhando pelo 
mundo, os gatos os acompanhavam, criando todo um novo nicho em que as populações mais tolerantes 
a presença dos humanos foram selecionadas. Com o tempo, passamos a trazê-los cada vez 
mais para perto, até que eles acabassem dentro   de nossas moradas, assim como os cachorros.
Nossa relação com eles é muito mais recente e menos utilitária do que nossa relação com os cães.
Existem bem menos raças de gatos do que de cachorros, talvez por isso, e mesmo dentre 
as raças, a variação também não é tão grande, por mais que seja notável.
Com a revolução agrícola,   animais herbívoros passaram a ser domesticados 
pela primeira vez, visando a exploração da carne, da lã, da gordura e do leite.
Nossos melhores amigos, cachorros nos ajudaram se tornando pastores inteligentes 
e vigias sempre alertas a perigos no escuro. De uma certa forma, os antromas que se 
espalhavam pelo globo eram uma sociedade   entre humanos, cachorros, gatos e nosso gado.
Para essa transição, foi necessário que mudanças acontecessem no sistema gastrointestinal 
de cães e gatos para que eles fossem   mais tolerantes a dietas ricas em amido e 
menos ricas em carne como seus ancestrais. Isso os preparou para as dietas baseadas 
em ração que oferecemos a eles atualmente.  Os cães também passaram a latir na fase adulta, 
coisa que apenas os filhotes de lobos são capazes. Mas essa não é a única característica infantil 
que foi preservada até a fase adulta no processo de domesticação dos cachorros.
Os olhos grandes, focinhos   mais curtos e comportamento mais brincalhão 
também foram selecionadas para se estenderem até a fase adulta, em um processo chamado neotenia.
Isso foi importante para que nós os achássemos fofos e nos apegássemos a eles, inspirando 
todo o nosso instinto de proteção e cuidado. Alguns cães se tornaram até capazes de mover suas 
sobrancelhas do jeito que nós bem conhecemos. Quando eles levantam ambas, ficam com a famosa 
cara de pidão ou de tadinho, cujos momentos oportunos pra usar eles conhecem muito bem.
Isso foi possível graças ao desenvolvimento   de músculos faciais atrofiados nos lobos, que 
são bem menos expressivos justamente por isso. Os Huskies, uma das raças mais próximas dos 
lobos, cuja separação da linhagem é muito antiga, também não são capazes de fazer grande parte 
das expressões faciais dos demais cães. Isso significa que a qualidade da comunicação 
e o entendimento das emoções e intenções entre cães e humanos foi um dos fatores mais 
importantes na evolução dessa amizade.  Mas enquanto essas características foram 
imprescindíveis para a domesticação e tenham sido benéficas para os cachorros, outros efeitos 
da domesticação, principalmente em sua fase mais recente, tem se mostrado cruéis e desnecessários.
No começo, as raças eram selecionadas por suas habilidades, mas hoje, a maioria das raças 
são selecionadas por padrões estéticos, seja no tamanho, formato do rosto e do corpo, 
cores, pelos, orelhas, cauda, praticamente tudo que poderíamos ter feito com eles, fizemos.
Mas de geração em geração, muitas dessas características se acumularam até um ponto extremo 
em que se tornaram um problema de saúde crônico. Quando comparamos o crânio de um Pug, por 
exemplo, com o crânio de um lobo, vemos que   as deformações na face tiveram efeitos deletérios 
na dentição, impediram essa raça de respirar pelo nariz e deixaram pouco espaço para os olhos e o 
cérebro, causando muitas vezes, dores constantes. As patas curtas e corpos longos de cachorros 
salsicha por exemplo, também tem articulações e juntas sensíveis que se desgastam com 
facilidade, causando dores intensas para andar. A lista de problemas crônicos gerados por 
características selecionadas esteticamente é   muito extensa e até mesmo perturbadora.
Muitos defendem uma mudança de padrão ou até o fim da criação de certas raças que 
sofrem exageradamente durante sua existência. Os cachorros vira-latas são de longe os 
mais longevos e saudáveis, porque são mais   geneticamente diversos e muito mais raramente 
envolvem cruzamentos consanguíneos, entre indivíduos muito aparentados, inibindo a expressão 
de características recessivas prejudiciais. Essa é uma das consequências da fase mais 
recente da domesticação, que se iniciou   entre 150-200 anos atrás, quando adquirimos 
o gosto por raças com características físicas extremas e passamos a criar padrões estéticos 
desejáveis mais rigorosos para as raças, sem qualquer preocupação com a sua saúde.
Hoje, a população mundial de cachorros está próxima de 1 bilhão de indivíduos, 
aproximadamente um para cada oito pessoas. Os gatos já são mais de 600 
milhões ao redor do mundo,   o que faz deles as espécies mais bem sucedidas 
de caniformes e feliformes, respectivamente. Tragicamente, cerca de 20% desses cães tem uma 
família humana, enquanto mais de 80% dos cachorros   vivem abandonados nas cidades, principalmente 
de países subdesenvolvidos e superpopulosos. Mais da metade dos gatos também não 
tem donos, o que resulta em um imenso   contingente de populações ferais, aquelas que 
são renaturalizadas depois da domesticação. A escala planetária da alteração que o ser 
humano fez nos ecossistemas beneficiou os animais que aprenderam a conviver conosco, 
mas eles acabaram fazendo parte do problema.  Gatos que vivem soltos ou que não tem donos são 
extremamente danosos para populações de mamíferos, répteis e pássaros nativos, já que eles caçam 
por diversão e raramente se alimentam deles. A aliança desses carnívoros com os humanos 
desequilibrou os ecossistemas de uma maneira fundamental, saturando artificialmente 
a cadeia ecológica com predadores.  Geralmente, quando olhamos para uma 
pirâmide ecológica, vemos que quanto mais alto o nível trófico, menor a biomassa.
Isso faz com que predadores de topo sejam alguns dos animais mais raros nos ecossistemas, 
porque quando suas populações explodem,   elas tendem a caçar todos os indivíduos 
de uma população de presas até a extinção. Ou seja, é fundamental para o 
equilíbrio ecológico que existam   poucos predadores e muitos herbívoros e onívoros.
É por isso que se chamam predadores de topo. Mas hoje, as populações invasoras de cachorros e 
gatos além de matarem animais desnecessariamente, ainda acabam competindo de forma desigual 
com os predadores nativos, causando uma   catástrofe ambiental onde se instalam.
Esse é uma das características macabras do antropoceno, o período geológico informal em que 
as ações humanas no planeta são um dos principais desafios evolutivos enfrentados pela vida.
Mas e se nós desaparecêssemos? O   que poderia acontecer com eles?
A extinção da civilização humana é uma possibilidade cada dia mais explorada 
pela ficção científica, e é compreensivelmente, um futuro presente no imaginário popular, 
em tempos traumáticos como o que vivemos. Mas e se nós fossemos e eles ficassem?
Se acontecesse do dia pra noite,   os primeiros a morrer seriam os cachorros 
muito pequenos, muito deformados, ou menos aptos fisicamente por qualquer razão.
Os vira latas teriam uma chance melhor do que qualquer raça, e as próprias raças 
deixariam de existir em alguns anos.  Sem os humanos para controlar os cruzamentos, 
eles voltariam a ter um fluxo genético muito mais homogêneo, tornando todos muito 
parecidos em menos de 10 gerações.  Suas populações também cairiam drasticamente, 
agora que dependem da exploração dos recursos naturais, e não tem mais os privilégios que 
eles usufruem na nossa presença e proteção.  Mas é provável que eles pudessem substituir muitos 
dos predadores nativos em seus papéis ecológicos, e em alguns milênios, novas espécies 
poderiam surgir, maiores, menores ou   adaptadas para alguma presa em específico.
Algo muito parecido aconteceu com os Dingos, os cães selvagens da Austrália.
Até pouco tempo atrás,   a Austrália era um continente quase totalmente 
dominado por mamíferos marsupiais, com o maior predador sendo o lobo da tasmânia, ou tilacino.
Apesar de sua aparência muito semelhante à dos caniformes, ele é um mamífero muito mais distante 
deles, um marsupial como os cangurus e coalas. Ele foi extinto oficialmente em 1938, quando 
os últimos indivíduos em cativeiro pereceram. Suas populações já haviam sofrido um 
baque quando passaram a competir com   os cachorros trazidos pelas populações de povos 
originários da Austrália, os grandes navegadores polinésios, mais de cinco mil anos atrás.
Lá, esses cães se reproduziram rapidamente, se adaptando a um novo ambiente, e voltando a 
viver separadamente dos humanos, nos desertos australianos, dando origem aos dingos.
Mas mesmo cinco mil anos de competição não foram suficientes para extinguir os tylacinos, que 
acabaram sendo dizimados pela mão humana, quando sua caça era recompensada e sua pele, valiosa.
Alguns consideram os dingos como uma espécie separada de canídeos, Canis dingo, outros 
o consideram uma subespécie de Canis lupus, por serem capazes de produzir 
descendentes férteis com cachorros.  Mas essa definição de espécie não 
funciona bem para os canídeos, que são notoriamente capazes de se reproduzir 
com sucesso entre espécies e mesmo entre gêneros diferentes, entre lobos, cachorros e raposas.
Nesse caso, o isolamento biogeográfico e comportamental dos dingos seria mais do que 
o suficiente para considera-los uma espécie   separada de canídeo, logo, talvez 
um spoiler do que poderia acontecer depois que os seres humanos desaparecessem.
Os gatos teriam menos dificuldade em superar   os humanos em um cenário pós apocalíptico, 
já que eles ainda retêm muito mais dos seus instintos ancestrais do que os cachorros, 
já muito mais infantilizados por nós.  Com sua vantagem de se movimentar 
tridimensionalmente nos espaços, eles poderiam facilmente se tornarem os 
principais predadores dos ecossistemas que   se estabeleceriam nas ruínas humanas.
Com o tempo, essa espécie pequena e generalista poderia dar origem a toda uma 
nova linhagem de carnívoros que pode reinar   no planeta por dezenas de milhões de anos.
Como ficou claro hoje, o passado e o futuro desses animais têm muito de incerto, mas uma coisa 
é certa: devemos muito do que somos hoje a esses humildes companheiros, que nos seguiram pelo 
mundo nos protegendo e trabalhando em conjunto.  Talvez se não fosse essa estranha, antiga 
e preciosa aliança, não estaríamos aqui. Para aprender mais sobre a história dos 
mamíferos eu sugiro fortemente a leitura   do livro “Ascenção e reinado dos mamíferos”, de 
Steve Brussate, Link na descrição para esse e outros livros incríveis sobre a história da 
natureza recomendados na nossa biblioteca.  Considere se tornar membro do ABC Terra e 
tenha acesso a mais de 16 horas de conteúdo exclusivo, um chat com os assinantes 
e o curso evolução, terra e tempo,   que cobre alguns dos temas mais 
fundamentais pro entendimento da paleontologia e da história natural.
Muito obrigado por acompanhar até o fim,   se inscreva, compartilhe com os 
amigos e tenha uma ótima vida.

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