Como a Lei Magnitsky Afeta Psicologicamente os Sancionados?

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Você já imaginou acordar um dia e descobrir que o mundo, como você conhece, não existe mais? Seus cartões não funcionam, suas contas estão congeladas e você está proibido de entrar em países que antes frequentava. Isso não é um filme de ficção. É a realidade para centenas de indivíduos sob o efeito da lei Magnitsk, uma legislação que pune violadores de direitos humanos e corruptos em escala global. Mas além do impacto financeiro e político, o que acontece dentro da mente de alguém que se torna um páia internacional da noite para o dia? Qual é o peso psicológico de ser publicamente nomeado, envergonhado e isolado pelo poder de nações inteiras? Esta não é uma história sobre política, mas sobre o colapso de uma identidade e a dor invisível que nenhuma sanção econômica pode medir. A Lei Magnitsk, ao impor um isolamento global e a perda súbita de poder e status, desencadeia um profundo processo de desestruturação psicológica nos sancionados. Este processo pode ser entendido como um colapso do self, onde a identidade pública e privada do indivíduo se desintegra. Para analisar este fenômeno, vamos explorar como o ego ferido reage através de mecanismos de defesa, como a negação e a racionalização se tornam ferramentas para lidar com a culpa e como a exclusão social provoca uma dor real, ativando as mesmas áreas do cérebro que a dor física. Primeiro, é preciso entender o que é a lei Magnitsk. Em sua origem, foi uma medida específica criada pelos Estados Unidos em 2012, com o objetivo de punir as autoridades russas consideradas responsáveis pela morte em custódia do advogado Sergei Magnitsk. Ele havia denunciado um esquema de corrupção massiva envolvendo altos funcionários do governo. No entanto, a eficácia dessa ferramenta levou a sua expansão. Em 2016, a versão global Magnitsk transformou a lei em um instrumento de alcance mundial, permitindo que o governo americano sancione qualquer indivíduo de qualquer país que esteja envolvido em atos significativos de corrupção ou em graves violações dos direitos humanos. Na prática, a lei funciona como um interruptor que desliga o indivíduo do sistema financeiro e legal dos Estados Unidos. O governo americano pode congelar de forma imediata todos os bens e interesses financeiros que o sancionado possua sob sua jurisdição. Isso inclui não apenas contas bancárias, mas também propriedades, ações e outros tipos de investimentos. Ao mesmo tempo, é imposta uma proibição de visto, impedindo que essas pessoas, seus familiares e associados entrem no país. A ação é direta, cirúrgica e desenhada para ter um impacto imediato. O verdadeiro poder da lei Magnitsk, no entanto, está no seu alcance indireto. O sistema financeiro global é profundamente interligado com o sistema americano. Por isso, grandes instituições internacionais, como as operadoras de cartão de crédito Visa e Mastercard, são obrigadas a cumprir as sanções para poderem continuar operando. Isso cria um efeito dominó. De repente, os cartões do sancionado deixam de funcionar em qualquer lugar do mundo. Empresas de tecnologia também podem ser forçadas a restringir acesso a serviços essenciais. Para completar o cerco, outros países, como o Reino Unido, o Canadá e a União Europeia adotaram legislações semelhantes, criando uma rede de restrições que isola o indivíduo de maneira quase total. O objetivo é claro e inequívoco, aplicar uma pressão esmagadora e, finalmente, responsabilizar pessoas que por muito tempo agiram com total impunidade. Quando essa muralha de poder e privilégios desaba, a primeira estrutura a ser atingida é o ego. De acordo com o pensamento de Sigmund Freud, o ego é a parte da nossa mente que funciona como uma ponte com o mundo real. Ele tem a difícil tarefa de equilibrar nossos desejos mais primitivos e imediatos. com o nosso senso interno de moralidade e as regras da sociedade. Para uma figura como um oligarca ou uma autoridade corrupta, o ego se acostumou a uma realidade muito particular, uma em que seus desejos são satisfeitos com facilidade e as regras que se aplicam aos outros parecem flexíveis ou simplesmente não existem para eles. Essa percepção de estar acima do sistema é central para o seu funcionamento. A sanção, portanto, é um ataque direto e frontal a essa percepção de si mesmo. É a realidade impondo um limite brutal e inegociável. A resposta psicológica mais imediata a um golpe tão profundo, segundo a teoria freudiana, é a ativação automática dos mecanismos de defesa. São táticas que a mente usa de forma inconsciente para se proteger de uma ansiedade e de uma dor que seriam insuportáveis de outra forma. A mais primária e fundamental dessas táticas é a negação. O indivíduo simplesmente se recusa a aceitar a realidade do que está acontecendo. Nós vemos isso claramente nas declarações públicas que se seguem a uma sanção. As acusações são rotuladas de caça às bruxas, uma manobra política ou um ataque à soberania do seu país. Note que eles não confrontam a acusação central de corrupção ou de abuso dos direitos humanos. Eles negam a própria legitimidade da sanção. É uma forma de criar uma realidade alternativa para diminuir a dor do impacto. Quando a negação por si só não é suficiente, outro mecanismo entra em ação, o deslocamento. A imensa raiva e a frustração geradas pela sanção não podem ser dirigidas contra a entidade que a impôs, como o governo dos Estados Unidos, pois isso só reforçaria o sentimento de impotência. Então, essa energia tóxica é redirecionada para alvos mais fracos e acessíveis. A culpa é projetada em opositores políticos internos, na imprensa que investiga seus casos ou em grupos minoritários usados como bods expiatórios. Ao atacar esses alvos, o sancionado consegue uma liberação momentânea da pressão e uma falsa sensação de controle, desviando o foco da sua própria falha e da sua nova condição de impotência. Uma vez que a barreira primária da negação começa a se mostrar insuficiente contra a dura realidade dos fatos, a mente precisa construir uma defesa mais elaborada, uma explicação que possa dar sentido à nova situação. É aqui que as ideias de Aaron Beck, o fundador da terapia cognitiva e de Albert Bandura, se tornam essenciais para entender a próxima fase da resposta psicológica. Beck nos introduz ao conceito de racionalização. Este não é um ato de mentira simples, mas um processo sofisticado de criar desculpas que somam lógicas para justificar um comportamento que, no fundo, se sabe ser inaceitável. Um indivíduo sancionado por perseguir opositores não processa o pensamento. Eu destruí a vida de uma pessoa inocente e fui punido por isso. Em vez disso, ele constrói uma nova narrativa. As ações que tomei foram necessárias para proteger minha nação de inimigos. ou eram eles ou a estabilidade do país. Através dessa ginástica mental, suas ações deixam de ser vistas como falhas morais e são transformadas em respostas lógicas e pragmáticas a um cenário de ameaça. Complementando essa visão, Albert Bandura, com sua teoria da aprendizagem social, descreveu um mecanismo chamado desengajamento moral. Trata-se do processo que permite à pessoas cometerem atos prejudiciais sem sentirem culpa, simplesmente por se desconectarem mentalmente das suas próprias ações. Uma das formas de fazer isso é através da justificação moral, que é muito parecida com a racionalização de Beck. Outra, ainda mais sutil, é a de minimizar as consequências. O sancionado não pensa no ser humano que ele perseguiu, na família destruída ou no sofrimento infligido. Em vez disso, ele vê sua vítima como um conceito abstrato, um agente desestabilizador, uma ameaça à soberania ou um obstáculo ao progresso. Ao desumanizar o alvo e focar em uma justificativa maior, ele consegue diminuir o peso do dano causado, tornando a culpa administrável. Essas estratégias mentais são absolutamente cruciais para um propósito fundamental, evitar o colapso da autoimagem. A pessoa precisa a todo custo continuar se enxergando como alguém bom, justo ou no mínimo justificado. Para isso, ela distorce ativamente a realidade. Esta é uma tentativa desesperada de manter intacta a crença na própria capacidade e valor. Um conceito que Bandura chamou de autoeficácia, que é a fé que temos em nossa própria competência para agir e produzir resultados. Para essas figuras, a competência sempre esteve ligada ao seu poder e sucesso. Admitir a culpa pelas ações que os levaram a esse sucesso seria o mesmo que admitir que todo o seu senso de valor e capacidade é uma fraude. Essa é uma verdade tão devastadora que a mente prefere construir uma realidade alternativa a ter que enfrentar um colapso tão completo. As sanções fazem mais do que ferir o ego. Elas destróem a identidade. O psicólogo Eric Ericson argumentava que nossa identidade não é algo que nasce pronto dentro de nós, mas que é construída dia a dia através da nossa interação com a sociedade e do reconhecimento que recebemos dos outros. Nossa identidade social, o papel que desempenhamos como empresário poderoso, líder político respeitado ou figura influente é uma parte fundamental de como entendemos a nós mesmos. Ela nos dá um lugar no mundo. Quando o mundo de repente para de nos reconhecer dessa forma e passa a nos rotular publicamente como criminoso, corrupto ou pária, ocorre o que Erikson chamou de uma crise de identidade. A pessoa é forçada a se fazer a pergunta mais básica e aterrorizante de todas. Se não sou mais quem eu pensava que era, então quem sou eu? É neste ponto que as ideias do psicanalista DW Winicot sobre o verdadeiro self e o falso self se tornam particularmente poderosas para entender a profundidade desse dano. Winicot teorizou que todos nós, para nos adaptarmos às exigências do mundo exterior desenvolvemos um falso self. É uma persona, uma fachada, uma máscara social que esconde o nosso eu mais autêntico e espontâneo para sermos aceitos e bem-sucedidos. Para a maioria das pessoas, existe um equilíbrio entre esses dois aspectos. No entanto, para muitos indivíduos em posições de extremo poder, que vivem em um mundo de aparências, relações baseadas em interesses e uma constante performance pública, a vida passa a ser completamente dominada por esse falso self. A identidade deles é a máscara. O poder devastador da lei Magnitsky está em sua capacidade de atacar e destruir publicamente este falso self. Ela não apenas congela contas bancárias, ela rasga a fantasia de poder. A identidade que foi cuidadosamente construída sobre pilares de riqueza, influência e, acima de tudo, impunidade, é exposta publicamente como uma farsa. E o que resta quando essa estrutura desmorona? Um vazio absoluto. Winicot descreve esse estado aterrorizante como um colapso do self. Não se trata de tristeza ou depressão, mas de uma sensação de aniquilação, de não ser real, de que a vida está se esvaindo. A pessoa se sente literalmente morta por dentro. E o motivo é preciso. A única versão de si mesma que ela conhecia, e mais importante, a única versão que o mundo por décadas validou e aplaudiu, foi desmantelada à força. Com isso, vem a perda total do sentido da vida, pois a vida inteira era sustentada por essa frágil construção artificial de poder e status. Essa crise de identidade é agravada pela perda de status, um colapso que vai além do psicológico e atinge o sociológico. O sociólogo francês Pierre Burger introduziu o conceito de capital simbólico, que pode ser entendido como o conjunto de prestígio, honra e reconhecimento que define o lugar de uma pessoa na sociedade. É a moeda invisível do respeito e da influência. A lei Magnitsk é uma arma de aniquilação em massa desse capital. De um dia para o outro, o indivíduo sancionado perde a capacidade de influenciar, de ser ouvido, de ter sua visão de mundo validada por seus pares. O respeito que antes recebia se transforma em suspeita e desprezo. O seu nome, que antes abria portas, agora as fecha. Ele se torna simbolicamente radioativo e essa perda de status aprofunda ainda mais o vazio deixado pela identidade destruída. A psicologia por trás dessa perda de poder foi dramaticamente ilustrada por Philip Zimbardo no famoso experimento da prisão de Stanford. O estudo, embora controverso, mostrou de forma clara como indivíduos comuns, quando colocados em posições de poder absoluto como guardas, rapidamente se tornavam autoritários e abusivos. Em contraste, aqueles designados como prisioneiros, despojados de poder e identidade, sofriam colapsos emocionais, ansiedade e depressão profundas. Os indivíduos sancionados pela lei Magnitsk passam por uma inversão de papéis exatamente como esta. Eles eram os guardas do seu próprio mundo, aqueles que ditavam as regras e viviam acima delas. De repente são transformados em prisioneiros de um sistema global. estão despojados de sua autoridade, de sua liberdade de movimento e de sua antiga identidade, presos em uma cela sem grades, mas igualmente sufocante. A consequência final de todo esse processo é a exclusão global. O ser humano é, por sua própria natureza, um animal social. A nossa sobrevivência e bem-estar ao longo da evolução dependeram da nossa capacidade de pertencer a um grupo. Por isso, a exclusão social não é apenas um inconveniente ou uma fonte de tristeza. Para o nosso cérebro, ela é registrada como uma ameaça existencial, um perigo de morte. E aqui a neurociência nos oferece a prova final e concreta do sofrimento. Estudos que utilizam imagens cerebrais, como aqueles baseados no jogo Cyber, em que um participante é subitamente ignorado por outros dois jogadores em um jogo online de arremesso de bola mostram um resultado impressionante. A rejeição e a exclusão social ativam as mesmas áreas do cérebro que são ativadas pela dor física, como o córtex singulado anterior. Isso significa que a dor de ser transformado em um páia global, de ser publicamente envergonhado e isolado, não é uma metáfora. Para o cérebro, a dor é real. O colapso do self, a humilhação pública e o isolamento forçado se combinam para criar um sofrimento neurológico concreto e mensurável, uma dor que nenhuma riqueza acumulada pode aliviar. Ao longo desta análise, desse impacto psicológico profundo da lei Magnitsk. Vimos que ela opera em um nível muito mais fundamental. do que uma simples sanção econômica. Ela é, em essência, uma arma de precisão que atinge a própria estrutura da identidade de uma pessoa. A pergunta que abriu nossa discussão foi sobre o que acontece na mente de alguém que da noite para o dia se torna um páia internacional. A resposta depois de nossa jornada é clara e sombria. Um colapso. Vamos recapitular o caminho dessa desintegração. A sanção, em seu impacto inicial, fere diretamente o ego, a estrutura que nos ancora na realidade. Como vimos com Freud, a resposta imediata é a ativação de mecanismos de defesa primitivos, como a negação dos fatos e o deslocamento da raiva para alvos mais fáceis. Quando essa primeira muralha se mostra insuficiente, a mente constrói defesas mais sofisticadas. É o momento da racionalização, como explicado por Beck Bandura, onde narrativas são criadas para justificar as próprias ações, transformando crimes em necessidades e a culpa em uma injustiça sofrida. O indivíduo se convence de que não fez nada de errado ou que suas ações foram um mal necessário. Contudo, essa defesa interna conter o ataque externo contínuo ao status e à identidade pública. O rótulo de pária se solidifica. Isso leva a uma profunda crise de identidade, como descrita por Ericson, onde o indivíduo não sabe mais quem é. O processo culmina naquilo que o Winicot chamaria de colapso do self. a desintegração total da persona pública, da máscara social cuidadosamente construída ao longo de uma vida, deixando para trás apenas uma sensação de vazio e de irrealidade. Finalmente, a perda de poder e o isolamento global analisados sob a ótica de Zimbardo e Burdier deixam de ser conceitos abstratos. A neurociência nos dá a prova final ao confirmar que a dor da exclusão social é registrada no cérebro com a mesma intensidade da dor física. O sofrimento é total, mental, social e neurológico. A Lei Magnitsk, portanto, funciona como um espelho forçado. Ela obriga indivíduos que construíram suas vidas e identidades sobre uma base de poder, impunidade e uma fachada de respeitabilidade a se confrontarem, talvez pela primeira vez, com o vazio que existe por trás dessa construção. A verdadeira punição imposta por esta lei não é a perda de acesso a contas bancárias ou a proibição de viajar para destinos de luxo. A punição final, a mais devastadora, é a perda de si mesmo. Isso nos deixa com uma reflexão final, uma que transcende a política e a geopolítica. Quando removemos todas as camadas de poder, de riqueza e de status que definem uma pessoa publicamente, o que realmente sobra? E essa é uma pergunta que em alguma medida talvez todos nós devéssemos fazer a nós mesmos.

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