O coração da imigração ilegal do Brasil para os EUA
0Eu fui para lá com 17 anos. Como quase todo mundo, a procura de algo novo para
a vida, para trabalho. Única coisa que a gente sofre
naquele país é quando você não consegue pegar os documentos.
Eu fiquei 15 anos sem vir. Olá, bom dia, sejam bem-vindos a bordo do nosso voo Azul 2875 com destino
a Governador Valadares E aí, como é que faz? (repórter) Ah… fica sofrendo lá, né. Essa região do Brasil é conhecida por exportar
mão de obra para os Estados Unidos. E isso há mais de meio século. Uma cultura de migração sustentada pela
fama de sonhos que deram muito certo: como construir a casa própria com dois
anos de trabalho no auge da juventude. Foi o que o Adelson conta que fez nos anos 80 e
você vai entender melhor como mais adiante. Mas alguns planos acabam dando
muito errado – especialmente de quem se lança na aventura
incerta das rotas ilegais. Quando era na Guatemala, eles matavam.
Não tinha volta. Era uma ida sem volta. O que explica esse fenômeno migratório
de décadas? Será que vale a pena? A DW Brasil veio até o leste de Minas
Gerais ouvir relatos dessa travessia, que já separou famílias e continua
sendo, em certos casos, mortal. Nós estávamos aqui na esperança
de que ele ia passar. Ele falou que o sonho dele era ir para os Estados Unidos. Tudo bom, gente, boa tarde. Eu queria perguntar
um negócio. O pessoal daquela igreja ali, a New Life, vocês conhecem? Acho que é
igreja evangélica ali da esquina. Eu conheço uma mulher que mexia. É gente que foi para os Estados
Unidos? Ou não? Vocês sabem? Acho que é um dono de imóvel. Por mensagem de voz, o
pastor disse o seguinte: Sobe som do pastor no WhatsApp A igreja surgiu dentro de Alpercata
tem… quatro anos atrás. A sede da igreja fica nos Estados Unidos,
em Danbury, Connecticut. Esse é só um dos sinais de um laço
histórico com os Estados Unidos. E estamos falando de uma cidadezinha mineira
com menos de 8 mil habitantes: Alpercata. Praticamente esvaziada em 2021, ano em que esta
reportagem relatou ter faltado até funcionário em uma padaria. Sem contar servidores públicos que
teriam abandonado os cargos para ir embora. Nossa, aqui vai muita gente, viu. Difícil uma família que não tem um. Vocês conhecem, se for contar no
dedo assim, quantas pessoas? Ihhh, eu já fui. Meu filho está lá, minha
nora está lá, meus netos estão lá. Eu vivi minha vida inteira lá. Sério? Quanto tempo? 26 anos. Orestes é um aposentado de 83 anos. Ele
migrou para os Estados Unidos nos anos 90, e até hoje alimenta boas lembranças do
tempo na América, como se diz por aqui. Rapaz, Estados Unidos para mim
foi uma bênção. Tudo o que eu quis eu consegui nos Estados Unidos. O quê, por exemplo? Levei minha família toda. Ganhei muito
dinheiro. Só não tenho porque toda vida eu fui muito gastador. Eu
cuidei da minha família muito bem. O que se vê em Alpercata, na verdade,
é reflexo de um movimento migratório que abrange mais de 50 cidades
do leste de Minas Gerais. Governador Valadares, a maior delas, sempre foi
uma espécie de polo, onde tudo começou. Como tudo, aliás, em Minas é trem, foi o
trem da estrada de ferro Vitória – Minas um dos primeiros protagonistas dessa história. A ferrovia, inaugurada no início do século
passado, precisou ser reformada nos anos 40. E foi justamente essa reforma que trouxe
engenheiros americanos até a região. Um deles acabou ficando junto com a família: o mister
Simpson (foto), que dá nome a este viaduto. O Mister Simpson, como ele era
conhecido, vai criar o Rotary, um dos primeiros a ser criado no Brasil é
em Governador Valadares, e o Rotary Club tem a prática do intercâmbio, de filhos que
vão fazer intercâmbio entre os países. Então foram valadarenses nesse
intercâmbio para os Estados Unidos, como vão vir também dos Estados Unidos. Então todo
esse contato com os americanos… com o dólar. Aí você tem que colocar também que era
o período do auge do cinema americano, do sonho americano, do modo
de vida americano, né? Para avançar, a gente precisa antes entender uma
coisa: qual era, afinal, o interesse americano num lugar tão pequeno no interior de Minas?
Só mesmo dar uma melhorada numa ferrovia? Não. O que hoje se chama Governador Valadares
era uma zona de Mata Atlântica abundante, rica em minerais. Sobretudo
mica, um isolante térmico cobiçado por estrangeiros da época para
a estrutura de aviões de combate. O contexto global era a Segunda Guerra. Só que a extração e exportação do
minério, organizada por americanos, mas feita por brasileiros, acabou atraindo
outros olhares. Da indústria siderúrgica, por exemplo, baseada num uso
da natureza sem precedentes para manter os altos-fornos. Em especial
da madeira para ter carvão vegetal. Os negócios no leste mineiro a partir daí vão se multiplicando. E o que sustentava a
economia leva a cidade à ruína. Os recursos naturais em floresta,
a floresta vai ser praticamente devastada. Nos anos 60 um estudo da
própria companhia Vale do Rio Doce, atual Vale, já mostra que essa floresta tinha
sido reduzida drasticamente a menos de 5%, ou seja, foi um prazo de 40, 30 anos logo uma
devastação total da cobertura florestal. Os solos que permitiram desenvolver uma
pecuária e fazer da região uma das principais regiões produtoras de carne que abastecia
o Rio de Janeiro, os grandes frigoríficos do Rio de Janeiro, né?, também começa
a ver, por excesso de uso dessa terra, ela começa a perder capacidade, suporte, né
do rebanho bovino começa também a diminuir. A mica também perde a importância com o
desenvolvimento de outras tecnologias. Por isso, ir para os Estados Unidos aos poucos
deixa de ser uma diversão das elites. Isso começa na década de
60, mais precisamente 1964, quando os primeiros imigrantes vão para
os Estados Unidos e esses imigrantes têm um perfil muito distinto dos que hoje
fazem esse movimento migratório. Os primeiros migrantes eles eram da
classe média, média- alta da cidade, falavam em inglês e migraram
a convite de trabalho. Esses primeiros foram pontos importantes porque
eles foram chamando os outros, recebendo, dando informações, né sobre trabalhar,
como fazer o visto de trabalho. Foi esse o cenário que fez a região de
Governador Valadares devagarzinho chegar ao censo de 2010 com três municípios do entorno
com a maior proporção de emigrantes do Brasil. Não por acaso, o noticiário
nacional sempre falou daqui como um dos maiores polos exportadores
de brasileiros para os Estados Unidos. Boa tarde! O Adelson foi no fim dos anos 80. Eu fui em 88, outubro de 88. Eu saí daqui
no dia 5 de outubro de 88. Cheguei lá dia 6. Fiquei lá dois anos e um mês praticamente
certinho, porque eu voltei no dia 8 de novembro de 90. Então, quer dizer,
foram dois anos de intenso trabalho lá. Brasileiro lá não pode ter, como diz, vida
boa. A gente não pode se dar esse luxo. A minha ideia era a de todo mundo, era comprar uma
casa própria. Eu tinha isso na cabeça. Eu vou para lá, vou comprar uma casa para mim, vou tentar
comprar um sítio ou uma chácara para o meu pai. Aquela coisa toda. Mas quando eu cheguei lá, eu vi
que a coisa era diferente, não era do jeito que a gente traçava aqui. Eu falei, não vai dar para eu
fazer nada disso. Vou focar na minha casa. Como, de fato, eu fiz: enquanto eu estava
lá, meu pai construiu para mim. Ele se refere a uma rotina exaustiva em
mais de um emprego para juntar dinheiro. Além do fato de ter ficado
irregular por um período, tendo que lidar com a distância dos pais
e da esposa, que na época era namorada. Mas o Adelson lembra da fase difícil
com carinho. Tanto que até mandou emoldurar a placa do carro que teve
enquanto viveu nos Estados Unidos. Ainda assim, para ele, a herança maior dos anos de América é e sempre vai ser a
casa onde mora com a família. Não troco ela por nada nessa vida. Ali tem um
valor sentimental muito grande. Não só pelo fato do tempo que eu estive lá, que eu urrei para
poder construir. Mas pelo fato de ter sido o meu pai que construiu para mim. Ele já se foi. Não é
fácil falar dele. Mas a gente mantém isso aí. E um detalhe: a produção da nossa reportagem
entrou em contato com o Adelson sem saber que, de alguma forma, eu e ele
tínhamos um parentesco. Ah, espera aí, você é filho do Mauricio? Sim! Ah, caramba, é lógico que a gente é primo. Agora que eu me situei e falei…
é a cara do Maurício. Essa história de ter um parente,
conhecido nos Estados Unidos, ela é tão real que eu mesmo, que nasci aqui
em Governador Valadares, tive três tios que moraram nos Estados Unidos. Foram para lá
na década de 70, quando começou esse fluxo maior. Todos eles moravam aqui, nesse bairro
onde eu estou, onde eu também cresci. Os três infelizmente já faleceram. Um deles, que retornou ao Brasil,
sem jamais ter reencontrado as duas filhas do primeiro casamento com uma
americana que hoje vive na Califórnia. Esse aqui é o álbum de casamento dos
dois nos Estados Unidos. Um presente para os meus avós e que a minha mãe guardou. — O sonho mineiro de imigrar para a América é assim: cercado de dúvidas e histórias
que nem sempre terminam bem. Principalmente para quem não consegue o visto e se
arrisca ilegalmente. O que é bastante comum. Em 2010, dois brasileiros do leste de Minas foram mortos num massacre enquanto tentavam
entrar nos Estados Unidos pelo México. Eles teriam se recusado a trabalhar como
assassinos de aluguel para traficantes. Ele falou que só ligava depois que
chegasse lá são e salvo, que ele ligava. Em 2021, segundo uma investigação da
Polícia Federal, um brasileiro abandonado por um coiote também morreu tentando a travessia
clandestina. Ele tinha passado mal na viagem. Coiote é o termo usado para se referir a pessoas que cobram para organizar a
ida dos não documentados. Este homem que prefere não se identificar afirma ter contratado o serviço. Mas
acabou preso e deportado. Fui roubado, fiquei de seis horas da
noite às 9 da manhã dentro de uma van que não cabia nem oito pessoas tinham
26 pessoas dentro, uma amontoada na outra. A travessia de um córrego, num lugar
lá que, se a pessoa cai, nunca mais acha. E sem contar ainda que quando a gente estava
atravessando, o cara falava com a gente a todo momento: vocês não podem conversar. Se
conversa, a polícia pega e não devolve. Quando era na Guatemala, eles matavam. Não
tinha volta. Era uma ida sem volta. Tem os agenciadores aqui. E
não só aqui, como eu te falei, nessas cidades que eu estou te falando,
nessa região toda, que as pessoas falam: olha, eu to querendo ir. Logo aparece um
telefone, ele vai marcar. Vai dizer o custo. Isso muitas vezes a pessoa faz contrato de
gaveta deixando seu imóvel, ou a família empresta dinheiro, ou vende tudo o que tem. Tem casos de
a pessoa vender a casa, a moto, os móveis e dar parte do dinheiro. E sempre com aquela promessa de
pagar o restante quando começar a trabalhar. A nossa produção conversou com um desses
agenciadores por mensagem de texto. Nas respostas, a promessa é de uma viagem
descomplicada passando pela Guatemala, depois México. E, em dez dias, Estados Unidos. O preço: 18 mil dólares. Com um financiamento
estabelecido pelo próprio coiote. E orientações, inclusive, a respeito do que levar: uma mala ou uma mochila
com roupas para turismo. Oi, meu gordinho… oi,
coração… vovó te ama, tá? Um dos sete filhos da dona Irene escolheu o caminho oferecido por um coiote
para tentar uma vida melhor. Ele viajou em 2021. Hoje, trabalha
como pintor em Massachusetts, onde a maior comunidade de
imigrantes é a brasileira. Tô indo trabalhar, seis e meia da manhã, num frio de menos oito. Vou pintar
o quartinho lá de uma mulher. É muito difícil. Você chega aqui, você não fala a
língua, você não tem muito contato com pessoas. E até você conseguir estabilizar não
é fácil. Coloca a vida em risco. A travessia é colocar uma vida
em risco. Eu mesmo, quando vim, meu filho tinha nove meses. Se fosse hoje,
talvez eu não viria sabendo como é. Tem a passagem pelo rio, tem a passagem pelo
deserto. Então tem várias formas de fazer essa travessia. Todas elas são extremamente
arriscadas. Até a década de 70 era arriscado porque simplesmente havia a possibilidade de
ser preso pela polícia americana. Hoje o risco é maior uma vez que essa região passa
a ser dominada, e que é chamado coiote, ele é uma pessoa liada ao tráfico de
drogas. Ficou muito mais arriscado isso. A nossa reportagem conversou com o procurador do Ministério Público em Minas
Gerais, Alexandre Chaves. Ele disse que se trata de um esquema
criminoso que simula um turismo na América Central partindo de avião
do Brasil. Tudo para que as vítimas tenham a chance de terminar o trajeto por
via terrestre até os Estados Unidos. Dependendo do acordo, até crianças ou adolescentes
são usados para tapear a polícia americana. No caso do esquema de cai-cai, utiliza-se
um menor de idade, uma pessoa com menos de 18 anos à qual é imputada a condição de
filho, de família. E é importante também que se diga que muitas vezes essa família ela
é forjada já de antemão no Brasil, né? Uma vez que essa família é pega pelas autoridades
de fronteira e havendo uma pessoa menor de idade, a política é que o país acolha essa família para
seguir um trâmite mais longo de uma possível deportação. Na prática eles terminam tendo acesso
imediato ao país porque a própria polícia de Fronteira não procede a deportação imediata,
nesses casos em que há o menor de idade. Em 2021, um órgão americano divulgou que
57 mil brasileiros haviam sido detidos no ano anterior tentando cruzar ilegalmente
a fronteira sul dos Estados Unidos. Um número oito vezes maior que
o total registrado em 2019. Qualquer que seja o caminho escolhido,
não tem como viajar sem um documento. Esse aqui é um lugar que fica bastante
movimentado na região. É onde se tira o passaporte. Eles têm um espaço ali no segundo
andar. Antigamente costumava dar fila, hoje não dá porque tem o agendamento.
A pessoa vem no horário específico. E o curioso é que a emissão de passaporte
aqui é maior inclusive que Belo Horizonte, que tem a população dez vezes superior
à de Governador Valadares. Isso se considerarmos não os números absolutos, mas sim a proporção de passaportes
pelo número de habitantes. A de BH é 4,5% e Valadares, 6,3%. E estamos
levando em conta apenas o ano passado, porque já foi maior, como
dá para ver na tabela. Conheço algumas pessoas, amigos meus,
que já foram para os Estados Unidos. Meu cunhado mesmo está preso na
fronteira esperando ser liberado. Esse elo da região com os Estados Unidos, ele se estende por vários aspectos. Alguns
até visíveis, como na arquitetura. Casas inspiradas no estilo americano. A migração é um tema tão presente em
Governador Valadares que a cidade teve outdoor de campanha para o presidente americano
Donald Trump nas duas últimas candidaturas. Mesmo que ninguém morando aqui
tivesse direito a voto. Os moradores também dizem que antigamente
muita coisa era negociada em dólar. Com o êxodo de gerações, o
município acabou crescendo, em parte, por esse investimento estrangeiro.
Seja no comércio ou em obras residenciais. Mas quase sempre ao preço de um coração
partido que ficou para trás. Oi, mãe. Oi, tudo bem? Bão? Beleza? Oh, pai, bênçao. Deus te abençoe. Tem aquela dor forte que a gente sente saudade
dos filhos. Tem sete netos lá. Dois que a gente não pegou neles ainda. Dois que nasceram lá.
Vou te falar… é vida que eles escolheram para eles. A gente tem que dar o apoio. É
filho, a gente faz tudo pelos filhos. Mas esse sempre foi o sonho dele de ir para
lá. Graças a Deus ele conseguiu realizar. O Domires e a Rita são pais do Douglas, que foi
legalmente para os Estados Unidos em 2018. No mesmo ano, ele levou a então
namorada, Maiara, e os filhos. No dia em que o resto da família desembarcou
em Washington, os dois se casaram. Eu cheguei seis da manhã e a gente
se casou oito da noite. A adaptação, no começo para mim foi mais difícil. Eu
tenho uma irmã gêmea e a gente sempre foi agarrada. Parecia que eu tinha
deixado uma parte minha para trás. De lá para cá, o casal se estabeleceu. Os filhos
já frequentam escola em solo americano. Eu perguntei se, de alguma forma, eles
se sentem preocupados com a promessa do governo Trump de endurecer
as políticas de migração. Se a pessoa está aqui nos Estados Unidos,
pessoa de bem, pratica o bem, trabalhador, paga os seus impostos, que é o mais importante,
um país capitalista, movido por dinheiro… essa pessoa pode ter certeza de que ela
não vai ter preocupação nenhuma aqui. O Douglas tem outras duas irmãs
nos Estados Unidos. A família no Brasil nunca conseguiu visto para ir visitar. Em janeiro deste ano, a mãe dele, que
tem uma empresa de buffet em Valadares, foi ao Rio de Janeiro fazer a quinta tentativa. Bom dia, hoje 22 de janeiro de 2025.
Mais uma vez eu retorno pela busca do visto. Mais uma vez foi negado. Não
sei o motivo. Mas eu não vou desistir. Eu acho que essa ideia de que os Estados
unidos é um local onde posso realizar parte dos meus sonhos, isso permanece,
independente de políticas e condições, sempre vai existir esse sonho de que lá é possível
realizar uma melhoria na minha qualidade de vida.