O Lado Sombrio de Viver Para Sempre

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Você acorda de novo pela milésima vez, não sentido figurado. Literalmente você já acordou mais de mil vezes no mesmo corpo, porque agora você vive para sempre. Calma. Sem doenças terminais, sem envelhecimento, sem morte acidental, a ciência finalmente quebrou o código da imortalidade. Seja por engenharia genética, um chip neural ou um pacto muito bem negociado com a física quântica, o resultado é o mesmo. Seu corpo não morre mais, nunca mais. Parece um sonho, né? Mas aí vem a pergunta que ninguém quer fazer. O que acontece com o mundo quando ninguém mais morre? No começo é incrível. Você vê seus pais envelhecendo e depois rejuvenecendo. A medicina reverte rugas, cura cânceres, conserta órgãos, troca ossos. Cada parte do corpo vira uma peça de reposição. Morreu? Relaxa, você volta. Hospitais viram museus. Cemitérios se tornam parques temáticos. A morte, essa velha senhora carrancuda é aposentada à força. Agora todo mundo vive para sempre. E viver para sempre muda tudo. Casamentos? Bom, até que a eternidade o separe é uma promessa pesada. Você começa a ver casais se divorciando no centésimo aniversário de casamento só porque não aguentam mais ver a mesma cara há um século no café da manhã. Empregos? Ninguém mais se aposenta. Seu chefe de 93 anos ainda tá lá firme, administrando a planilha desde que ela era feita no papel. Promoção: só se ele for atropelado por um trem, mas ele não vai porque ninguém morre. E a aposentadoria nem existe mais. O INSS surtou e desapareceu. Agora você trabalha para sempre. Aliás, com tanto tempo sobrando, você vai fazer todas as carreiras que já pensou. Professor, astronauta, músico, podcaster, jogador de xadrez subaquático. E quando enjoar, ã, você vira mãos de budista, só para variar. Mas aí vem a superpulação. Porque veja, se ninguém morre, mas ainda continuam nascendo bebês, o planeta começa a aparecer uma estação de metrô em horário de pico, só que global. A Terra atinge os 10 bilhões, depois 15, depois 30. Cidades crescem para cima. Mega estruturas com centenas de andares surgem. Tóquio se funde com Osaka. São Paulo vira um continente. A Amazônia já era, virou condomínio. Alimento vira pó nutricional. Água é racionada. O céu, bom, você nem vê mais o céu, só propaganda digital e drones de entrega. E o planeta sente. As mudanças climáticas aceleram, o calor aumenta, os oceanos sobem, as geleiras desaparecem. Vivemos em cápsulas climatizadas e fingimos que tá tudo bem. Enquanto lá fora o mundo pega fogo, literalmente. Então a humanidade olha para o céu. Se não cabe mais gente aqui, bora colonizar Marte e Saturno e a galáxia. Com 500 anos de vida útil, ninguém tem pressa. Os voos espaciais não precisam ser rápidos. Você pode passar 80 anos dormindo dentro de uma cápsula e acordar do outro lado da galáxia. fresquinho, sem rugas. E aí, claro, começa a guerra, porque o ser humano pode ser imortal, mas ainda é humano. Grupos se dividem, os que acreditam na vida eterna como bênção e os que vem isso como maldição. Alguns cultuam a morte como símbolo sagrado, outros querem desligar o sistema, literalmente, sabotar a tecnologia, trazer o fim de volta. Imagine a ironia. Depois de milhares de anos tentando escapar da morte, agora tem gente tentando morrer de novo. E nesse mundo maluco, você segue vivendo. Assiste seus filhos virarem seus colegas de trabalho. Vê a história se repetir em ciclos infinitos. Guerras que voltam com outros nomes. Estilos de roupa que renascem a cada 60 anos. O mesmo reality show regravado pela oitava vez com atores eternos. E aí bate. Você tá cansado, não fisicamente, mas cansado de existir. Você lembra quando o viver era precioso? Quando a morte fazia tudo ter valor? Quando cada ano contava? Agora tudo é arrastado, repetido. Você visitou 103 países, escreveu 17 livros, aprendeu mandarim, culinária francesa, sapateado. E ainda assim falta alguma coisa, porque no fundo a eternidade vira a prisão. Uma prisão dourada, com vista pro universo, mas sem saída, sem fim, sem ponto final. E você pensa que será que o segredo da vida sempre foi a morte? Mas relaxa, por enquanto você ainda é mortal. Ainda pode errar, envelhecer, mudar de ideia. Ainda pode amar alguém sabendo que o tempo é curto, que cada abraço conta, cada escolha importa, porque a vida ainda tem prazo. E é exatamente isso que dá sentido a ela. Imortalidade parece legal, mas talvez o melhor da vida seja justamente ela acabar, porque no fim das contas é a morte que nos ensina a viver. M.

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