O que está Acontecendo com a Espanha?!
0“Se você não é proprietário, não é ninguém.”
Essa frase ecoou por quase uma década na Espanha. E assim, com o apoio do governo,
bancos e mídia, o país mergulhou de cabeça numa bolha imobiliária que transformou o
sonho da casa própria num pesadelo coletivo. E mais de 20 anos depois, a
conta ainda está sendo paga. O país vive uma crise imobiliária sem precedentes. A revolta contra o turismo em massa
cresceu. Moradores já não têm onde viver, jovens gastam mais da metade da renda só com
aluguel e bairros tradicionais se transformaram em vitrines para quem só passa alguns dias.
Em Barcelona, 10 mil licenças de aluguel turístico serão canceladas. Em Madrid, cartazes
acusam vizinhos de operar hospedagens ilegais. E enquanto isso, fundos internacionais
acumulam milhares de imóveis, transformando cidades em carteiras de investimento.
Então, como a Espanha chegou a esse ponto? Por que o turismo, que movimenta bilhões
e gera empregos, se tornou também um dos principais motores da crise habitacional?
Tudo começa com uma bolha que parecia ter estourado… mas na verdade, nunca parou de crescer.
Para entender a crise atual, precisamos voltar aos anos 2000. Entre 2000 e 2007, a Espanha viveu
o que chamaram de “tsunami urbanizador” — uma explosão na construção de moradias alimentada
pelo crédito fácil e uma política deliberada do governo de estimular o setor imobiliário.
Os números eram impressionantes. O setor imobiliário chegou a representar até 18% do PIB
espanhol, mas se incluirmos todas as atividades econômicas vinculadas ao ramo — desde materiais
de construção até serviços financeiros — eles chegaram a impressionantes 30% da economia. Era
uma dependência perigosa. “Em Barcelona mais de 30% das empresas criadas entre os anos 2000 e 2007
pertenciam a algum ramo do setor imobiliário”. E não era só crescimento econômico. Era um
crescimento urbano descontrolado. Na Catalunha, uma das regiões mais afetadas, a superfície
urbanizada aumentou 49% entre 1993 e 2009. Para se ter uma ideia, em Barcelona 55%
do desenvolvimento da cidade entre 2000 e 2007 foi devido ao boom imobiliário .
Mas por trás dessa prosperidade aparente havia um sistema complexo criado e estimulado
pelo próprio Estado. Os bancos, com incentivo governamental, ofereciam condições de crédito
que hoje parecem absurdas, como por exemplo, hipotecas com prazos de até 50 anos — uma vida
inteira pagando a mesma casa. Pior ainda: muitos empréstimos cobriam até 120% do valor do imóvel.
Ou seja, além do valor da casa, o financiamento já incluía custos adicionais como taxas, impostos
e até reformas — o que fazia com que o comprador começasse devendo mais do que o imóvel valia.
Para facilitar ainda mais o acesso ao crédito, os bancos exigiam fiadores, normalmente pais
ou avós, que colocavam suas próprias casas como garantia. Quando a dívida não era paga, múltiplas
propriedades da mesma família podiam ser tomadas. E havia uma máquina de propaganda
massiva. Durante quase uma década, a população espanhola foi bombardeada por uma
única mensagem: “se você não é proprietário, não é ninguém”. Os discursos oficiais, apoiados
pela mídia e por especialistas do setor, repetiam obsessivamente que a bolha imobiliária
não existia e que os preços nunca cairiam. Essas frases viraram senso comum, circulando de boca em
boca até se integrarem no pensamento das pessoas. Para imigrantes, havia campanhas específicas
de publicidade estimulando crédito hipotecário. Um exemplo emblemático: bancos colocaram
anúncios nos tapumes da reforma da Catedral de Barcelona em 2005, um dos pontos turísticos
mais importantes da cidade, oferecendo facilidades especiais para estrangeiros tomarem empréstimos.
Os bancos adotaram um sistema de amortização que concentrava o pagamento de juros nos primeiros
anos do contrato. Assim, mesmo com parcelas mensais fixas, a maior parte do valor pago ia para
os juros — e quase nada para reduzir a dívida. Na prática, isso significava que uma família
podia pagar por anos e continuar devendo praticamente o mesmo valor que no início.
Paradoxalmente, essa produção em massa de moradias não facilitou o acesso à habitação. Entre
1997 e 2007, os valores das casas subiram 232%. A Espanha se tornou um dos países
da União Europeia com maior taxa de aumento de preços no mercado imobiliário.
O resultado foi previsível e devastador. Em 2008, quando a bolha estourou, o desemprego disparou
para 26% da população ativa e 47% entre jovens e imigrantes — justamente os grupos que mais tinham
sido incentivados a se endividar. Milhares de famílias perderam suas casas, mas o mais chocante
é que elas continuaram devendo pros bancos mesmo após o imóvel ser retomado. Isso porque, pelos
contratos da época, entregar a casa não quitava a dívida. Se a casa fosse vendida por um valor menor
do que o saldo devedor, a diferença continuava pendente — com possibilidade de penhora de outros
bens ou salários. Era um sistema bem cruel: as pessoas perdiam tudo e ainda saíam devendo.
E aqui vem a parte mais revoltante da história. Entre os 17 principais bancos credores de
hipotecas, os dois maiores concentraram mais de 50% das execuções de imóveis. E foram
justamente esses dois bancos os que mais receberam socorro público do governo espanhol. Entre 2009 e
2013, eles consumiram 27,1% e 22,2% dos recursos destinados pelo governo para “políticas de
socorro às instituições financeiras” — um total de aproximadamente 25% do PIB espanhol.
Foi o Estado criando o problema, alimentando a especulação, incentivando o endividamento
irresponsável e depois salvando quem lucrou às custas de quem perdeu tudo.
Mas o problema não parou por aí. Anos depois, uma nova crise surgiu.
Nos anos seguintes à crise hipotecária, a Espanha assistiu a uma lenta recuperação
econômica. Mas essa recuperação não significou estabilidade para quem precisava de moradia. O
cenário mudou, os agentes mudaram, mas o problema continuou: o acesso à habitação permaneceu fora
do alcance de uma parte crescente da população. Avançando pra 2025, protestos tomaram as ruas de
Barcelona — e não eram pequenos. Manifestantes marcharam por pontos turísticos como a Sagrada
Família gritando “Voltem para casa!” a turistas perplexos, enquanto cafés eram alvos de pistolas
d’água e hotéis de luxo recebiam adesivos hostis. O alvo da revolta dessa vez era o crescimento
descontrolado do turismo e o impacto direto disso no mercado de moradia. Placas diziam “Seu Airbnb
era minha casa”. A cidade, que já havia vivido a crise das hipotecas, agora se via novamente numa
situação parecida, mas por outro motivo. Aluguéis de curta duração, fundos internacionais
e plataformas digitais transformaram bairros inteiros em zonas de passagem.
Então, como exatamente isso aconteceu? Entre 2014 e 2020, os preços de aluguel
dispararam de forma acelerada. Em cidades como Barcelona e Madrid, os aumentos chegaram a
52%. Na Catalunha, o crescimento foi ainda pior: 60%. Era uma nova bolha, mas dessa vez
alimentada pelo mercado de locação. Mas de onde vieram todos
esses imóveis para alugar? A resposta nos leva de volta às consequências da
primeira crise. Muitos daqueles imóveis retomados pelos bancos após 2008 foram vendidos em
massa para grandes fundos de investimento internacionais, como a “Blackstone, o
maior proprietário imobiliário do mundo, tornou-se em apenas cinco anos o maior
proprietário imobiliário da Espanha, com ativos avaliados em 20 bilhões de euros”.
Esses fundos são conhecidos como “fundos abutres”, pois o patrimônio gigantesco que eles possuem
só foi possível graças aos milhares de despejos forçados de famílias, realizados com o apoio do
Estado. Esses fundos transformaram moradias em ativos puramente financeiros, guiados unicamente
pela lógica do lucro. Compraram imóveis em massa após os despejos, com aval do Estado, e passaram
a controlar grande parte da oferta habitacional, tanto de longo quanto de curto prazo,
especialmente via plataformas como Airbnb. Na prática, criaram um verdadeiro
monopólio habitacional. E foi aqui que o turismo se tornou peça-chave
da nova crise. O número de imóveis convertidos em alojamentos turísticos cresceu 17,5%
ao ano entre 2010 e 2018. Plataformas como Airbnb tornaram esse processo rápido e barato:
bastava um imóvel vazio e conexão com internet para transformá-lo em hospedagem lucrativa.
O turismo na Espanha na verdade é um paradoxo. Em 2024, o setor teve o melhor resultado desde
2019: movimentou quase 249 bilhões de euros, o que representa mais de 15% de toda a economia
do país. Também gerou 3 milhões de empregos, quase 14% de todos os postos de trabalho da Espanha.
Mas o lado negativo é que em alguns bairros onde mais de 10% dos imóveis foram
convertidos em aluguel turístico, os preços de aluguel subiram entre 31% e 33%.
Em Barcelona, o número de imóveis turísticos registrados ultrapassou 10
mil unidades. Nacionalmente, o governo ordenou a retirada de 66 mil imóveis
da plataforma, alegando ausência de licença. Uma pesquisa com 450 especialistas revelou que 93%
apontam o uso turístico das moradias como causa da falta de habitação para aluguel (fonte 4).
Mas o problema não está só nos apartamentos turísticos. Os aluguéis temporários,
aqueles com contratos de menos de um ano, também cresceram muito. Só nos primeiros
três meses de 2025, eles já representavam 14% de todo o mercado de aluguel na Espanha,
um aumento de 25% em comparação com o ano anterior. O preço dos aluguéis na Espanha
subiu, em média, 25% só nos primeiros três meses de 2025. Em algumas cidades, o salto
foi ainda maior: Bilbao 36%, Alicante 33%, Barcelona 29% e Madrid 23% (fonte 11).
Para entender a dimensão do problema, temos alguns números concretos. O salário médio
na Espanha em 2024 era de 2.642 euros brutos por mês. Mas o aluguel médio de um apartamento
de 80 metros quadrados custa cerca de 1.100 euros mensais. Em Madrid ou Barcelona,
esse valor salta para 1.400-1.500 euros. Isso significa que uma pessoa com salário
médio gasta entre 42% e 57% da renda bruta só com aluguel — muito acima dos 30%
considerados sustentáveis. Para jovens, que ganham menos e enfrentam contratos
precários, a situação é ainda pior. A situação da Espanha chegou a tal ponto que
explodiu em vários protestos. Em abril de 2024, manifestações simultâneas ocorreram em
mais de 40 cidades espanholas. Em Madrid, milhares foram às ruas gritando “Rentistas
culpables, Gobierno responsable” e “Madrid será la tumba del rentismo”. Em barcelona,
milhares de pessoas foram às ruas protestar, exigindo redução de 50% nos aluguéis. Segundo os
organizadores, foram mais de 170 mil pessoas, mas segundo a Guarda Urbana, foram “apenas” 22 mil.
Para muitos moradores, especialmente em centros históricos, a convivência tornou-se insustentável.
Barulho constante, festas, ausência de vizinhança fixa e aumento exponencial do custo de
vida local. Em muitos bairros costeiros, como Málaga, Valência e Palma de Maiorca,
a porcentagem de imóveis convertidos em aluguel turístico ultrapassou os
30%. Em alguns bairros inteiros, não havia mais padarias ou escolas — só cafés,
restaurantes e apartamentos para estrangeiros. A sensação generalizada era clara: a cidade havia
sido vendida. E mais uma vez, o Estado assistiu passivamente enquanto o problema crescia.
Era preciso agir. A pressão popular havia chegado ao limite, as manifestações tomavam as
ruas e até mesmo a mídia internacional começava a noticiar a “crise habitacional espanhola”. O
governo finalmente decidiu fazer alguma coisa. Só que as soluções chegaram tarde demais,
eram contraditórias e com muita burocracia. Só em 2023 — mais de uma década após o colapso do mercado imobiliário — o governo espanhol
anunciou uma das medidas mais esperadas: a realocação de 40 mil imóveis da Sareb
para uso em programas de moradia social. A Sareb, conhecida como “banco mau”, foi criada
em 2012 para ajudar os bancos espanhóis que estavam quebrando por causa da crise. Ela
ficou responsável por juntar e administrar os chamados “ativos tóxicos” — imóveis encalhados
e dívidas que os bancos não conseguiam recuperar. A ideia era tirar esse peso dos bancos e organizar
essa bagunça separadamente, numa entidade pública, para evitar o colapso total do sistema
financeiro. Agora, parte desse patrimônio será usada para criar um parque público de habitação.
David Lucas, secretário de Estado da Habitação, afirmou em entrevista que o orçamento do
governo espanhol para habitação aumentou oito vezes desde 2018 — subindo de 476 milhões
para 3,5 bilhões de euros por ano. Segundo ele, esse reforço mostra o compromisso do governo com
o tema, mas os efeitos ainda demoram a aparecer. Isso porque a responsabilidade pela política
habitacional é dividida: parte das decisões está nas mãos das comunidades autônomas e prefeituras,
que podem ou não aplicar as medidas propostas pelo governo central. Essa fragmentação dificulta
ações coordenadas e retarda os resultados. A nova Lei da Habitação, aprovada em 2023,
previa limites nos valores dos aluguéis em áreas de mercado tensionado, maior controle sobre
imóveis turísticos e a criação de uma empresa pública estatal de moradias. Eram avanços
importantes, mas o resultado foi ineficaz. Apesar da existência de uma lei nacional,
algumas comunidades autônomas, como Madri, decidiram não aplicar os limites de
aluguel, como explicou David Lucas. Em Cataluña, onde foram aplicados controles
de preço, houve redução nos aluguéis e maior estabilidade nos contratos — quase 17 mil
contratos a mais que no ano anterior. Mas em Madrid, que concentra meio milhão de
moradores em zonas tensionadas, nada mudou. David Lucas demonstrou frustração com a recusa
de regiões como Madrid em aplicar os limites de aluguel. Segundo ele, o índice usado para
controlar os preços é baseado em dados simples e confiáveis, como os valores declarados no
Imposto de Renda pelos próprios proprietários. Para o secretário, não faz sentido rejeitar
uma medida que traz estabilidade ao mercado e é tecnicamente bem fundamentada.
A fiscalização também é um desastre completo. Mesmo com regras mais duras para
controlar o aluguel turístico, milhares de imóveis ainda operam fora da legalidade. Em
2024, a ministra Isabel Rodríguez determinou a retirada de 66 mil anúncios do Airbnb por não
estarem devidamente registrados — um número que revela a dimensão da informalidade no setor.
Mas até para retirar anúncios ilegais, o Estado espanhol demonstra sua ineficiência burocrática.
Barcelona tinha que mandar listas com até 800 anúncios ilegais por correio postal para a sede da
Airbnb na Irlanda, um processo que levava meses. Pablo Bustinduy, ministro de Consumo,
tentou soar firme: “Chega de proteger quem lucra em cima do direito à moradia.”.
Mas a realidade é que o próprio governo central mantém estruturas burocráticas
que facilitam exatamente esses negócios. David Lucas reconheceu publicamente
que a situação exige acordos amplos entre diferentes níveis de governo e agentes do
setor. Em outras palavras: o governo confessa sua própria impotência e empurra decisões
para o futuro enquanto as famílias sofrem. As medidas mais efetivas vieram de governos
locais, não do Estado central. Barcelona anunciou o cancelamento de mais de 10
mil licenças de aluguel turístico até 2028 — uma decisão histórica que faz da cidade
a primeira na Europa a acabar com as licenças para aluguéis turísticos. Málaga proibiu novas
concessões em 43 bairros. Madrid planeja fazer o mesmo no centro quando os apartamentos
turísticos dividem espaço com vizinhos. Mas mesmo essas ações locais geram resistência e
contradições. Outras cidades como Valência e Palma de Maiorca temem perder receitas com turismo
e se recusam a adotar medidas semelhantes, preferindo manter o modelo atual.
E quando o Estado tenta agir, faz isso de forma lenta e ineficaz. O processo
contra o Airbnb, por exemplo, demorou meses tramitando em tribunais. A empresa recorreu de
todas as decisões, mantendo anúncios ilegais no ar enquanto os recursos corriam na Justiça.
E a situação pode piorar. Especialistas preveem que os preços da habitação espanhola têm espaço
para subir mais 20% até alcançar os níveis reais de 2007. O próprio governo admite que não há
bolha — o que, paradoxalmente, é uma má notícia para quem precisa comprar casa, pois significa
que não haverá correção natural dos preços. Em duas décadas, o Estado espanhol criou
duas crises habitacionais consecutivas. Primeiro estimulou uma bolha que quebrou o país.
Depois permitiu que os mesmos imóveis virassem máquinas de lucro para fundos internacionais.
Hoje, enquanto jovens espanhóis gastam 60% do salário com aluguel, os políticos prometem
mais “soluções” estatais. Mais leis, mais burocracia e mais intervenção. Como se
mais do mesmo veneno fosse curar o problema. E você concorda comigo? E o
que acha do fato de que hoje, na Espanha, ter um imóvel virou privilégio
e morar virou quase um luxo? Comenta aqui embaixo e me diz o que achou desse vídeo.
E se você quer proteger o seu dinheiro, mesmo sabendo que vai ter que gastar de novo
daqui a pouco — como as rodovias de asfalto que racham em meses — confere esse vídeo
aqui que tá na tela. Aperta nele aí que eu te vejo lá em alguns segundos. Por esse
vídeo é isso, um grande abraço e até mais.