Olhar Espacial: o dia que a Lua foi ‘partida em duas’
0E por falar em lua, na coluna Olhar Espacial de Hoje, o Marcelo Zureta conta a história de monges ingleses que podem ter testemunhado há mais de 800 anos o maior impacto lunar já visto pela humanidade. Vamos com ele, Marcelo Zureta. Olá, pessoal. Saudações astronômicas. Na noite de 18 de junho de 1178, Cantbury, na Inglaterra, era uma cidade silenciosa e fria. O sol havia se posto a pouco e o céu ainda aguardava o brilho do crepúsculo. No pátio de um mosteiro, um grupo de monges descansava após as orações, os olhos voltados pro fino crescente da lua, suspenso no horizonte. A luz prateada recortava a silhueta das árvores distantes quando de repente algo extraordinário aconteceu. O chifre superior do crescente se dividiu em dois e do meio dessa divisão surgiu que só poderia ser descrito como uma tocha flamejante, cuspindo brasas, fagulhas e labaredas. Os monges observaram atônitos enquanto a lua parecia se contorcer como se estivesse ferida. estranho, mas pelo menos cinco monges que presenciaram a cena juraram sob a honra que relataram exatamente o que viram, sem exageros. Aquele, sem dúvidas, seria um dos relatos mais intrigantes da história da observação lunar e que só seria explicado 800 anos depois. O registro chegou até nós graças a Jevas Decantebui, cronista do mosteiro, que intrigado com o testemunho dos companheiros, anotou cada detalhe. Em sua crônica, ele descreveu o fenômeno com a minúcia que a época permitia, preservando palavras que atravessariam oito séculos para intrigar cientistas modernos. Numa tradução livre, Jevaz escreveu: “Do ponto da divisão saltou uma tocha ardente, projetando chamas, carvões e faíscas à grande distância, e que a lua, como uma cobra ferida, se contorcia antes de retornar ao seu aspecto normal. Para nós, acostumados com transmissões ao vivos, câmeras exclusivas e uma variedade de instrumentos científicos, um depoimento surreal como esse pode parecer pouco, mas naquela época mesmo um astrônomo teria dificuldades para descrever aquilo. Vale lembrar que no século XI nosso planeta era considerado inviolável e centro do universo. Não existiam asteroides e a lua era perfeita, pois ninguém nunca havia visto sequer uma cratera em sua superfície. Sem a tecnologia e o conhecimento que temos hoje, cada registro histórico é como um fóssil, uma pista rara, frágil e valiosa, que nos ajuda a compreender os eventos do passado e até mesmo prever os que ocorrerão no futuro. A astronomia está repleta de histórias onde as anotações detalhadas e registros históricos foram base para descobertas fundamentais séculos depois. Foi estudando registros antigos que os babilônos encontraram um ciclo de recorrência de eclipses a cada 18 anos, o chamado ciclo de saros. Da mesma forma, Harley percebeu que um grande cometa reaparecia cada 76 anos e com isso acabou desvendando a natureza desses corpos gelados. E sem Gervasi, provavelmente esse estranho fenômeno observado pelos monges de Cantbury teria desaparecido para sempre junto a tantos outros esquecidos por nossos antepassados. Durante séculos, o relato foi uma curiosidade medieval. Alguns o viam como uma metáfora religiosa, outros como um erro de interpretação. Talvez uma nuvem distorcendo a forma da lua ou um meteoro em nossa atmosfera, criando uma ilusão de ótica. A verdade é que, sem evidências, aquele acontecimento seria apenas um lance polêmico em uma partida cósmica sem var. Foi somente no século XX que o enigma foi finalmente explicado de forma convincente. O geólogo lunar Jack Hertung decidiu revisitar aquele intrigante depoimento, mas agora usando o conhecimento moderno sobre impactos cósmicos. Hart suspeitava que os monges poderiam ter flagrado o exato momento em que um grande asteroide teria atingido a lua. Cruzando a localização sugerida pelo texto de Gervazi, com fotografias obtidas pelas missões Apolo e Lunar Orbita, o geólogo encontrou uma cratera que poderia confirmar a sua tese, a cratera Giordano Bruno. Com cerca de 20 km de diâmetro, a cratera é cercada por um sistema de raias brilhantes que se estendem por centenas de quilômetros. O brilho de suas raias sugere que o material é fresco, ou seja, que a cratera é muito jovem. Harton calculou que o impacto que criou Jordano Bruno teria sido exatamente o tipo de evento capaz de gerar o espetáculo descrito por Gervase. Um cone de ejeção bloqueando parte do crescente, material incandescente refletindo a luz do sol, poeira e gases criando distorções que fariam a lua parecer tremer. Se Harton estiver correto, os monjas de Canturin podem ter testemunhado um dos raríssimos grandes impactos lunares numa observação única na história. Uma conclusão espetacular para uma história fantástica, onde a ciência desvenda mais um grande mistério da humanidade. Só que não. A teoria de Harton é muito bem fundamentada e parece bastante conclusiva. Só que em 2008 a sonda japonesa Caguia fez uma contagem de pequenas crateras nas raias do material ejetado da cratera Giordano Bruno e com isso constatou que ela não é tão jovem assim. A cratera teria cerca de 4 milhões de anos, quase nada em termos geológicos, mas uma eternidade comparada aos 800 anos daquela observação histórica. E com isso, o problema foi desresolvido, o mistério revendado e o evento relatado pelos monges voltou a ser um enigma. Há quem diga que o fenômeno poderia ter sido causado por distorões atmosféricas ou mesmo por um impacto mais modesto. Estamos longe de um consenso, mas quem sabe tenhamos mais uma oportunidade de esclarecer essa história em breve. É que em 2032, um asteroide descoberto no final do ano passado, o 2024 YR4 pode atingir a Lua. Talvez esse impacto proporcione uma visão espetacular, semelhante ao que foi observado há mais de oito séculos. A probabilidade que isso ocorra ainda é muito baixa, mas se ocorrer, será a melhor oportunidade da era moderna para observar o impacto dessa magnitude em nosso satélite natural. Ainda não temos certeza se os monges de Canterbury presenciaram o dia em que a lua foi atingida por um grande asteroide. Mas se isso ocorrer em 2032, não dependeremos apenas de depoimentos criativos de monges medievais. Teremos telescópos em todo mundo apontado paraa lua. sondas orbitais capazes de registrar cada milissegundo e transmissões ao vivo, exibindo pela primeira vez a formação de uma nova craté em nosso satélite natural. E mesmo que isso não ajude a compreender o que foi visto em 1178, será literalmente um espetáculo histórico com direito a var. Bons céus a todos e até a próxima. Ча.