Por Dentro do PCC: Os Segredos Que Nunca Contaram
0Se você perguntar por mim lá no Jardim Elvira, em Osasco, talvez digam que eu morri ou que fui parar longe depois que tudo explodiu. Eu cresci numa rua onde a lei era ditada pelos gritos da madrugada e pelos tiros que às vezes furavam a parede de casa. Minha mãe fazia faxina no Butantã, saía antes do sol nascer, voltava depois que ele já tinha se escondido. E ainda assim o dinheiro não dava nem para comprar o gás. Eu tinha 9 anos quando vi o primeiro corpo estendido na esquina. Era um cara que devia umas notas pro responsável da área. Eu nem entendia direito o que era PCC. Só ouvia os adultos coxixando que eles tinham chegado e que agora ninguém podia dar passo errado. Mas para criança aquilo era só um cenário de medo que ia se tornando comum. Aos 11 comecei a entregar marmita pros vizinhos. Foi assim que escutei pela primeira vez meu nome na boca de um deles. O moleque é ligeiro, fica de olho. Eu nem sabia que aquilo era um elogio perigoso. O tempo foi passando e a escola foi ficando pequena para tanto problema. Quando meu pai sumiu de casa e deixou só a conta do boteco e a dívida do aluguel, entendi que ou eu arrumava algum jeito de ajudar minha mãe ou a gente ia dormir na rua. Nessa época, todo mundo falava que quem tem família não entra, mas isso era só história para enganar quem via de fora. Quando a necessidade bate, quando a fome aperta, ninguém quer saber de honra ou moral. Você só quer sobreviver. Lembro da noite em que minha mãe chorou encostada na porta e disse que não aguentava mais. Eu prometi que ia dar um jeito. Eu tinha 12 anos e naquele instante uma parte de mim morreu e outra começou a nascer. Uma parte que eu nunca imaginei que ia me levar tão fundo na escuridão. A transição de menino bom para soldado começou com uma pergunta simples que mudou minha vida. Tá a fim de ganhar um troco de homem? Quem disse isso foi o Jefinho, um cara da minha rua que já era olhado com respeito e medo. Eu tinha acabado de ajudar ele a descarregar umas sacolas que pesavam mais que meu corpo. Não perguntei o que tinha dentro, só peguei e carreguei. Quando devolvi, ele colocou uma nota de 50 na minha mão. Era mais dinheiro do que minha mãe ganhava num dia inteiro de faxina. Eu devia ter corrido, mas não corri. Fiquei ali segurando o dinheiro, com o coração batendo forte e uma parte de mim dizendo que aquilo era errado. A outra parte gritava que era a única saída. No dia seguinte, ele apareceu de novo. Dessa vez não tinha sacola. Ele só disse: “Hoje tu vai ficar ali na esquina. Se a viatura aparecer, tu avisa. Simples assim. Um aviso, um grito, era só isso. E mais 50 na mão. Eu fiquei. Passei a tarde inteira suando frio, achando que todo carro que parava era polícia. Quando anoiteceu, ele voltou e me deu outra nota. “Tu tem futuro”, falou, sorrindo com aqueles dentes tortos. Foi assim que começou. Primeiro como olheiro, depois como carregador. Quando percebi, já sabia quem devia, quem mandava e quem estava jurado. Eu me tornei daquele mundo sem perceber a linha que atravessei. Cada dia me afastava mais da pessoa que minha mãe sonhava que eu fosse. Eu ainda dormia na mesma casa, com o mesmo teto furado e o mesmo colchão velho. Mas dentro da minha cabeça, algo tinha mudado para sempre. A favela tinha seu próprio tribunal. Não tinha juiz com toga, nem promotor engravatado. Tinha homens com pistola na cintura e a palavra final que ninguém ousava contestar. Eu me lembro do dia que o Jefinho me disse que eu precisava provar lealdade. A voz dele soou como sentença. Chegou tua hora, moleque. Quer crescer? vai ter que mostrar que não treme. O que ele queria de mim parecia simples, ir até um beco ali no Jardim Angela e cobrar uma dívida. O homem devia 4.000 pro bonde e estava jurado. Eu só precisava aparecer com dois caras, bater na porta e avisar que o prazo tinha acabado. Mas quando cheguei lá, vi a filha do homem, uma menininha com a mesma idade da minha irmã. E foi ali que entendi que o crime não tem fronteira para quem machuca. Eu tremi por dentro, mas não podia demonstrar fraqueza. Entrei na casa. A menina chorava no canto, enquanto o pai, todo suado, tentava juntar umas notas velhas e implorar mais prazo. O mais velho que estava comigo, o fumaça, olhou para mim e falou: “Ou tu faz teu nome, ou vai ser só mais um bunda mole”. Eu respirei fundo. O que fiz ali ainda me atormenta mesmo hoje. Não precisei encostar a mão em ninguém, mas ver o terror nos olhos daquela família foi como arrancar um pedaço de mim. Saí de lá, sentindo o coração pesado, com a certeza de que a partir daquele dia não tinha mais volta. Quando voltei pro ponto, o Jefinho me entregou um maço de notas e disse que agora eu era de confiança. Mas eu já sabia que não era só confiança, era corrente. Corrente que ia me prender naquele mundo por muito mais tempo do que eu podia imaginar. Na quebrada, todo mundo sabia que o batismo era a linha que separava quem só fazia corre pequeno de quem era parte da firma. Eu tinha 15 quando chegou minha hora. Foi numa madrugada fria, no tabuão da serra, num barraco abandonado que eles usavam para reunião. Eu fui levado com o rosto coberto. Não era que eu não soubesse onde era, mas era a forma deles mostrarem que ali quem mandava eram eles. Quando tiraram o pano, viu uns sete homens sentados em círculo. O mais velho, que todo mundo chamava de Naldo, levantou o olhar e disse meu nome como se fosse dono da minha história. Márcio. Meu peito gelou. O Ndo era lenda viva, respeitado até pelos caras do PCC lá de São Paulo. Ele começou a falar das regras, não eram muitas, mas eram sagradas. Lealdade acima de tudo, silêncio absoluto, respeito com quem é da casa, cobrança sem dó de quem vacila. Aqui não tem meio termo”, ele disse, olhando direto nos meus olhos. “Ou tu é ou tu não é”. Eu fiquei parado com a garganta seca até ele estender uma corrente fina. Eu sabia o que aquilo significava. era o símbolo do compromisso. Quando aceitei e passei no meu pescoço, o Naldo sorriu de canto. Agora tu faz parte e não esquece, daqui não se sai andando. Eu só consegui balançar a cabeça. Saí de lá de madrugada, com o coração batendo tão forte que parecia explodir. No caminho de volta para casa, pensei em tudo que tinha deixado para trás. escola, amigos, a esperança da minha mãe de que eu seria diferente. Mas naquele momento eu já tinha entendido. Eu era PCC e quem entra por necessidade acaba ficando por convicção. Na televisão falavam que o PCC era só tráfico, só assalto a banco, só violência. Mas quem tava lá dentro sabia que o que mantinha tudo funcionando não era só medo, era disciplina. Era o código que ninguém ensinava em papel, mas todo mundo conhecia. Eu aprendi rápido que tinha coisas que você podia fazer e outras que nem pensar. Roubar da firma. Morte. Falar demais com curioso. Morte. Gastar o dinheiro do bonde em besteira e não repor. Morte. E não era ameaça de boca. Eu vi uns três sumirem só nos meus primeiros meses. O Naldo sempre dizia: “Aqui palavra vale mais que documento”. E era verdade, um aperto de mão significava compromisso que podia custar tua vida se fosse quebrado. Outra regra era o silêncio. Eu nunca contei nada para minha mãe, nem quando ela desconfiava que tinha algo errado. Eu chegava em casa com as sacolas de compra, deixava o dinheiro do aluguel na cômoda e dizia que era de bico. Ela só olhava para mim com aquele olhar que misturava gratidão e medo. No fundo, ela sabia, todo mundo sabia, mas ninguém tinha coragem de falar. Eu também aprendi que dentro do PCC não tinha espaço paraa emoção, tinha que ser frio. Quando chegava a ordem, você cumpria. Não importava se o cara que ia ser cobrado era teu conhecido, se tinha criança na casa, se a mulher dele implorava ajoelhada. A regra era clara: quem devia pagava. Se não pagasse com dinheiro, pagava com sangue. O que mais me marcou foi ver como todo mundo obedecia sem questionar, porque quem ousava perguntar porquê não ficava muito tempo respirando. Essas eram as regras não escritas, as que ninguém tinha coragem de contar lá fora. E eu, moleque de Osasco, que só queria tirar minha mãe da miséria, virei parte dessa engrenagem. O que ninguém fala é como o dinheiro te envenena devagar. No começo, eu só queria ajudar em casa, pagar o aluguel atrasado, botar comida na mesa, comprar um tênis decente. Mas logo aquilo virou mais. Quando comecei a receber parte das porcentagens das cobranças, percebi que tinha mais grana na mão do que meu pai tinha visto em 10 anos de trampo. Eu chegava na feira do Rushdale e comprava o que quisesse sem olhar preço. O dono do bar me cumprimentava diferente. A vizinhança que antes nem notava minha existência começou a respeitar. Eu fingia que não ligava, mas por dentro aquilo alimentava meu ego. O dinheiro vinha fácil e ninguém me perguntava nada. Foi nessa época que entendi como o crime prende. Não é só o medo de morrer, é o conforto que te compra aos poucos, a sensação de poder quando todo mundo abaixa a cabeça. Eu também vi de perto o outro lado, gente que não sabia usar o que ganhava. Teve um parceiro que torrava tudo em carro rebaixado e mulherada. Outro que investiu em comércio de fachada tentando parecer empresário. Mas no fundo todo mundo sabia que aquilo era dinheiro que podia sumir de um dia pro outro. Eu sempre guardei o meu. Tinha uma caixa escondida debaixo da cama, cheia de nota amassada. Toda noite eu contava tentando me convencer que um dia ia parar. Só que dentro da firma não existe um dia. Toda vez que eu pensava em sair, lembrava que bastava um vacilo para virar estatística. O dinheiro sujo parecia fácil, mas cada nota tinha o peso de uma ameaça. E a cada nova entrega, cada nova cobrança, eu sentia que minha alma se afastava mais do moleque que só queria salvar a mãe. O povo gosta de acreditar que polícia e bandido são lados opostos. Eu também achava isso quando era moleque, mas bastou pouco tempo lá dentro para perceber que, na prática, os dois lados se encontram muito mais do que se imagina. Foi numa tarde chuvosa que entendi de verdade como funcionava. Eu tava no Butantã esperando um carregamento que ia sair de um galpão. O combinado era a viatura dar uma passada rápida, fazer vista grossa e seguir viagem. Quem acertava isso era o Naldo, que tinha contato direto com um delegado aposentado que puxava os cordões. Quando a viatura encostou, meu coração disparou, mas em vez de abordagem, um dos PMs desceu, trocou meia dúzia de palavras com o motorista e saiu com um envelope grosso enfiado na jaqueta. Ninguém falava disso, mas todo mundo sabia. Toda operação grande tinha proteção que vinha de cima. Eu ouvi conversa de que parte do dinheiro financiava a campanha política, comprava silêncio de repórter, mantinha todo mundo confortável. No começo, eu achava que era exagero, mas depois que vi com meus próprios olhos policial pegando propina, entendi que não era filme, era a realidade que ninguém queria encarar. O crime só cresce porque tem muita gente de farda e gravata que lucra calado. Foi naquela tarde que minha última ilusão morreu. Eu percebi que não existia caminho limpo dentro daquele mundo. Nem polícia, nem político, nem empresário grande estava fora. Todo mundo fingia que não via. E se você ousasse contar, acabava igual aos outros que tentaram abrir a boca, com nome esquecido e corpo sumido. Quando voltei para casa, minha mãe perguntou porque eu tava pálido. Eu só disse que era cansaço, mas por dentro era o nojo de saber que a sujeira era muito maior do que eu tinha coragem de admitir. Eu costumava pensar que só quem era fraco pensava em correr. que homem de verdade segurava o rojão até o fim. Mas depois de tanto tempo carregando segredo, medo e vergonha, chega uma hora que teu corpo começa a pedir socorro. Foi numa madrugada gelada que decidi fugir. Eu tinha acabado de voltar de uma entrega em Barueri, onde deixei documentos e dinheiro que nem me contaram a origem. Quando deitei no colchão, fiquei olhando pro teto e pensando que minha vida tinha virado um corredor sem saída. O relógio marcava 3 da manhã quando levantei decidido. Peguei a mochila, enfiei umas roupas e todo o dinheiro guardado na caixa. Meu plano era simples, sumir pro interior, arrumar trabalho qualquer e nunca mais olhar para trás. Eu sabia que eles iam me caçar, mas naquele momento pouco importava. Eu só queria respirar sem medo. Antes de sair, passei no quarto da minha mãe. Ela dormia com o rosto virado pro canto, os cabelos brancos espalhados no travesseiro. Fiquei alguns segundos parado ali, sabendo que talvez fosse a última vez que eu via ela. Saí andando sem olhar para trás. Peguei um ônibus para Campinas. tentando convencer a mim mesmo que dava para recomeçar, mas no fundo eu sabia que não era tão fácil. No caminho, meu celular tocou com o número restrito. Não atendi. Quando cheguei na rodoviária, tinha dois recados no WhatsApp. Volta para tua quebrada. A gente resolve isso. Era só isso. Mas bastava para eu entender que não importava onde eu fosse. Eu era deles e fugir era só adiar o fim. Naquele banco gelado com a mochila no colo, percebi que nenhum dinheiro do mundo valia aquela sensação de estar condenado. Mesmo assim, voltei porque o medo deles era maior que qualquer coragem que eu pensei que tivesse. E foi naquele dia que aprendi que dentro do PCC ninguém some vivo. Quando voltei paraa quebrada, todo mundo fingiu que nada tinha acontecido. Odo me recebeu no mesmo escritório improvisado no tabuão da serra com o mesmo sorriso frio de sempre. Achou que ia para onde? Perguntou sem levantar o tom de voz. Eu tentei inventar desculpa, dizer que precisava pensar, que estava cansado, mas ele ergueu a mão e me calou antes da segunda frase. Tu sabe o que acontece com quem trai. Meu coração disparou. Eu sabia das histórias. Moleque que tentou fugir e foi encontrado dias depois com recado grudado no peito. Homem feito que jurou lealdade e depois foi amarrado no porta-malas. Mas tu é novo, Márcio. Ele continuou olhando nos meus olhos como se buscasse um fiapo de dignidade. Afirma: “Não quer tua morte, quer teu respeito”. Foi então que ele contou que a partir daquele dia eu ia ter que provar de novo que era digno de confiança. Cargas mais pesadas, entregas para gente que eu sabia que era pior que qualquer ladrão e principalmente silêncio absoluto. Eu não discuti, só balancei a cabeça, mas quando saí dali senti que tinha morrido por dentro. Aquela tentativa de fuga tinha sido minha sentença. Passei semanas sem dormir direito. Cada moto que passava na rua, eu achava que vinha me buscar. Todo mundo começou a me olhar diferente. Até quem antes me respeitava começou a evitar meu olhar. Porque no crime a fama de traidor gruda na tua pele como tatuagem. Eu continuei trabalhando mais frio, mais calado, mais quebrado por dentro. Porque se eu parasse, eu sabia o que me esperava. Foi assim que aprendi que o pior castigo não é a morte, é continuar vivo, sabendo que teu nome nunca mais vai valer nada, que teu destino tá escrito na mão de quem você jurou obediência e que não existe recomeço para quem trai a confiança desse mundo. Se você tá ouvindo minha história agora, talvez ache que é só drama, que eu inventei metade para parecer vítima. Eu mesmo já pensei nisso, que talvez ninguém fosse acreditar, mas tem coisa que você não inventa. O medo que te faz acordar no meio da noite suando frio. A vergonha de olhar no espelho e saber que virou o que mais desprezava. Eu não tô aqui para limpar minha consciência. Sei que não tem redenção suficiente para tudo que fiz. Eu tô aqui porque acho que alguém precisa ouvir a verdade antes de cometer o mesmo erro. O PCC não é só bandidagem de esquina. É uma estrutura que se infiltra onde você menos espera. No comércio que parece honesto, no político que jura combater o tráfico, no empresário que se diz exemplo. Eu vi muito moleque achar que era só dinheiro fácil. Vi família ser destruída, mãe enterrando filho, mulher perdendo o marido. E quando acaba, sobra só o vazio. Eu resolvi contar tudo porque cansei de carregar esse fardo sozinho. Porque talvez se pelo menos uma pessoa ouvir isso e decidir não dar o primeiro passo, já tenha valido a pena. Eu não sei quanto tempo me resta. Não sei se amanhã vou acordar com alguém batendo na minha porta. Mas se esse for meu último recado, que fique claro. Nada que você conquiste nesse mundo compensa a vida que vai perder por dentro, porque ninguém entra e sai igual. Eu entrei para salvar minha mãe, para fugir da miséria. No fim, só criei outra prisão. E se tem algo que eu queria que todo moleque entendesse, é que o crime não é atalho, é armadilha. E quando você percebe, já tá tarde demais para voltar. [Música]