Por que era horrível ser um gladiador (e não, não era igual ao filme)
0Você acorda com o som de gritos, não de torcida, de dor. Um homem morreu essa manhã com um corte do queixo ao umbigo. As tripas ainda estão no chão. Você pisa em sangue seco para ir tomar café da manhã, que aliás é mingal de cevada fria com larvas. Não tem cama, só a palha suja e pulgas que te tratam como banquete. Você dorme com 30 homens que roncam, peidam e choram à noite. Mas ninguém julga, porque amanhã pode ser o último dia de qualquer um. Você não nasceu, gladiador. Ninguém nasce. Você foi comprado ou preso. Talvez traiu alguém errado ou só nasceu pobre demais para ter direitos. Agora é propriedade. Um animal treinado para morrer bonito. Treinamento. Chicotadas, fome e pancadas com espada de madeira. Se quebrar um osso, azar o seu, vai lutar mesmo assim e com estilo, porque Roma gosta de espetáculo, não de reclamações. Você treina sobre sor de 40º, sem água, sem descanso. Se cair, leva a chute. Se desmaiar, perde a janta. Se reclamar? Bom, você não reclama duas vezes. A comida, uma tigela de feijão, um pedaço de pão duro e, se tiver sorte, carne de terceira, que já passou da validade do mês passado. Pelo menos vim com proteínas extras, vermes. A armadura pesa, o escudo pesa, o medo pesa mais. Você aprende a sorrir com a morte, ou pelo menos a não cagar nas calças quando escuta o nome do próximo oponente. Espartano, veterano, já matou sete e você nunca lutou nem com um porco bravo. E quando chega o dia, você entra na arena. 50.000 Mil romanos berrando, rindo, cuspindo vinho caro. Apostam na sua morte como se fosse corrida de cavalo. E você é só entretenimento. O chão é areia, mas areia vermelha, porque o sangue nunca seca direito. Tem pedaços de gente ali, dente, unha, pedaço de nariz. Você finge que não vê. A plateia vê e adora. A luta começa. Você tenta respirar, mas a armatura aperta, o capacete machuca, a espada escorrega da mão suada. Você bloqueia um golpe, leva outro no rim, cai. E quando acha que vai morrer, a multidão grita e o imperador decide. Viver ou morrer. Sorte sua. Hoje ele tá de bom humor. Você vive, mas seu amigo não. Ele perde a cabeça, literalmente. Você volta mancando, vomita na parede e desmaia de dor. Não tem médico. Tem um escravo que passa vinagre no ferimento e reza. E você agradece porque a infecção é quase certa, mas pelo menos arde menos do que o desprezo. Você sobreviveu e isso te torna valioso. Parabéns. Agora você vai lutar mais vezes contra mais fortes, mais rápidos, mais desesperados. Cada vitória é só mais uma passagem pra próxima humilhação. O público ama você. Te dão apelidos, jogam flores. Mulheres te desejam, homens querem ser você. Mas basta um paso em falso, uma derrota, uma escolha errada. E seu nome vira a estatística, mas um cadáver na arena, substituído por outro brinquedinho novo. A expectativa de vida, seis lutas, talvez sete. Morre-se aos 22. Se viver até os 30, você é lenda e alejado. As doenças, piolho, desinteria, infecções de ferida, febre, tifoide, escorbuto, não tem antibiótico, tem sangria, que é basicamente cortar você para tirar o mal. Funciona tão bem quanto emaixar um tubarão. E tem os leões. Ah, sim. Quando o imperador quer variar, soltam os animais famintos para decorar o show. Você luta contra um cara com espada? Ok. Contra três caras e um tigre? Melhor, um dia colocaram um anão com uma lança montado num urso. Sério, Roma adorava criatividade e crueldade. Você tenta fugir, mas tem guardas, tem muros e tem a certeza de que se conseguir escapar vai acabar como escravo de novo ou crucificado na estrada. Então você fica, porque morrer lutando é menos lento do que morrer correndo. Às vezes oferecem a liberdade, um pedaço de papel chamado Rudes, mas não é tão simples. Tem que vencer muitas lutas, ser famoso, ser útil e mesmo assim podem mudar de ideia. Um companheiro ganha liberdade, vai embora mancando. Dois dias depois volta morto, pendurado numa carroça. Foi confundido com o ladrão, ou talvez só não gostaram da cara dele. Fim da história. Sem homenagem, sem flores, você já não sente mais nada. A dor é parte de você. Os gritos do público viram ruído, as mortes viram rotina. Você olha para si, não se reconhece mais. Não é um homem, é um bicho de circo com espada. E mesmo assim tem quem inveje sua vida de glória, como se fama apagasse as cicatrizes, como se aplausos curassem os ossos quebrados. Um dia você cai, a espada voa da sua mão, você sangra no chão quente, olha paraa arquibancada, o povo grita, o polegar desce e você sorri, porque pelo menos acabou. No fim, ser gladiador não era heróico, era ser carne viva num palco de pedra, uma existência curta, brutal e descartável. Um boneco que sangra bonito e morre em silêncio. Mas relaxa, hoje ninguém te obriga a lutar até a morte. Só até a próxima meta, a próxima cobrança, o próximo burnout. Você não tem um escudo, mas tem um celular com 2% de bateria. E no fim, pelo menos, você morre sentado em uma cadeira ergonômica. M.







