Por que PINTÁVAMOS com RADIAÇÃO?

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O ano era 1922, dentro de um banco nos Estados Unidos. Em meio ao caos do expediente, uma das operadoras de caixa, Grace Fryer, sentiu uma pontada na boca. Ao tocar os lábios, ela percebeu que um dos seus dentes tinha caído. E dias depois, um inchaço dolorido na mandíbula fez ela buscar ajuda médica. O raio-x do seu rosto revelou algo aterrorizante. Os ossos dela estavam se deteriorando como se estivessem sendo corroídos de dentro pra fora. A sua mandíbula estava cheia de buracos, como um tecido roído por traças. Ela não fazia ideia, mas entraria pra história como uma das primeiras vítimas de um acidente nuclear da história. E ela não era a única. Casos como o de Grace começaram a surgir por toda Nova Jersey. Mas antes de explicar o que aconteceu, eu preciso fazer uma pergunta. O que vem na sua mente quando eu falo a palavra radiação? Pra maior parte das pessoas, a palavra traz lembranças de desastres nucleares famosos, como o de Chernobyl. Mas radiação nem sempre foi sinônimo de perigo. Muito pelo contrário, na verdade. Existia um tempo em que os perigos da radiação não eram bem conhecidos. Ou mesmo quando eram conhecidos, também eram ignorados. E foi uma mistura de falta de conhecimento com negligência que deu origem a um dos primeiros acidentes radioativos da história. Esse vídeo é a história do que aconteceu com um grupo de mulheres chamadas de Garotas do Rádio. Pra entender essa tragédia, nós precisamos voltar no tempo pra virada do século 19. Estamos em 1895, o ano em que um tipo de luz capaz de penetrar materiais opacos, como carne humana, é descoberto. Esse é o raio-x. E sua capacidade de tirar fotos de ossos é usada na medicina até hoje. Três anos depois, em 1898, os renomados cientistas Marie Curie e Pierre Curie revelaram ao mundo um novo elemento químico, o rádio. E esse era o primeiro elemento radioativo descoberto e isolado. E aqui é uma boa hora para explicar o que é radiação. A ideia é bem mais simples do que parece. Radiação é simplesmente um movimento de energia através do espaço e essa energia pode viajar de várias formas, como ondas de luz, elétrons e até núcleos de átomos. Quando falamos de elementos radioativos, nós estamos falando de um tipo de radiação bem específica, que é a radiação ionizante. Esse tipo de radiação pode ser perigosa porque tem energia suficiente para destruir moléculas e arrancar os elétrons dos seus átomos. E acredite, você não quer que isso aconteça com as moléculas do seu DNA. Mas esse poder destrutivo da radiação não é necessariamente ruim. Pesquisas no começo do século 20 mostraram que ela poderia ser uma forma de combater o câncer. Mas essa utilidade médica levou a um salto lógico bem perigoso. Se a radiação é útil na medicina, então ela faz bem pra saúde. Se você voltasse no tempo pros anos 20, o que você veria seriam diversas empresas adicionando radiação em praticamente tudo que fosse possível. Esse período até ganhou o nome de Febre do Rádio. Pra vocês terem ideia do nível, mais ou menos nessa época a empresa Radior começou a comercializar uma linha de cosméticos contendo o elemento rádio, incluindo creme noturno, pó compacto, cremes hidratantes, com o slogan Segredo da Beleza, e prometiam até um reembolso de 5 mil dólares para consumidoras insatisfeitas. Propaganda de um produto chamado Raditor prometiam deixar sua água energizada com pequenas partículas de rádio. Até as pastas de dente prometiam um sorriso radiante. E elas falavam isso literalmente. E foi no auge dessa obsessão pelo rádio que a US Radium Corporation teve uma ideia brilhante. Eles patentearam um tipo de tinta revolucionária que chamaram de Undark. E o seu grande diferencial era que ela brilhava no escuro. O inventor da primeira versão da tinta foi William J. Hammer, amigo pessoal da família Currie. Para produzir a sua tinta radioativa, Hammer misturou cristais de sal de rádio com sulfeto de zinco, um composto que brilhava na presença de radiação. O sulfeto absorve a radiação do rádio e brilha como resultado. Então a mistura de rádio com sulfeto uma tinta que na época era revolucionária, capaz de iluminar relógios e painéis de equipamentos militares até mesmo no escuro. Então, diferente dos cremes de beleza radioativa, a tinta Undark tinha alguns usos bem legítimos, especialmente durante a Primeira Guerra Mundial. Um relógio que não precisava de luz externa era genuinamente útil para soldados. Mas apesar de ter inventado a tinta, Hammer não comercializou ela. Isso só começou anos depois quando Sabin Arnold e George Willis patentearam a tecnologia e fundaram a US Radium Corporation. Eu acho que agora é uma boa Nas fábricas da US Radium Corporation em Nova Jersey, um grupo de jovens mulheres manipulavam essa substância sem qualquer proteção. E elas eram instruídas a seguir um método muito simples. Molhar o pincel nos lábios pra deixá-lo mais fino e preciso antes de pintar. E então passar o pincel na tinta radioativa, pintar o relógio e aí repetir o processo, colocando o pincel na boca. O processo era repetido centenas de vezes por dia, sem medo, sem suspeita, sem saber com o que elas estavam lidando. E pra piorar a história, o salário era generoso, muito acima da média pra mulheres da época. Então, ao final do dia, elas saíam da fábrica com os rostos levemente corados e roupas brilhando no escuro. Elas eram chamadas de mulheres luminosas, encantando a todos onde quer que elas fossem. Pra elas, aquilo não era um risco. Era quase mágico. E a empresa garantia. O rádio era inofensivo. daria um brilho especial pra pele. Mas havia algo que ninguém contava pras trabalhadoras. Nos bastidores da empresa, tanto os donos quanto o presidente sabiam que existia perigo. Eles manipulavam a tinta com máscaras de proteção e aventais de chumbo. Já existia a desconfiança de que a radiação podia fazer mal. Mas isso nunca foi contado às mulheres que estava se envenenando todos os dias. Enquanto Grace tentava conviver com seus dentes em ruína, Katherine Sharp começou a perceber algo ainda mais assustador. As suas colegas de trabalho estavam definhando diante dos seus olhos. A energia vibrante das jovens que um dia iluminaram a fábrica agora dava lugar a olheiras profundas e pele amarelada. e as mesas de trabalho foi substituído por tosses fracas e gemidos abafados de dor. A sua colega Irene Rudolph não conseguia mais segurar um pincel. A sua mandíbula estava apodrecendo, a carne se desprendia em pedaços e o seu hálito exalava um cheiro pútrido de morte. Cada tentativa de se erguer da cama era um suplício. Seu próprio corpo parecia estar desistindo de lutar. Catherine olhou ao redor e viu que a Irene não era a única. Amélia Maggia, Ellen Quillen e tantas outras pareciam estar sendo devoradas de dentro pra fora. O que antes pareciam apenas doenças passageiras, agora revelavam uma verdade impossível de ignorar. Alguma coisa na fábrica tava matando aquelas mulheres. Não demorou pra que Catherine perceavam as próprias sentenças. Mas elas não seriam silenciadas. Unidas, começaram a lutar contra o veneno invisível que se infiltrou nos seus ossos. E a Associação Americana dos Consumidores virou aliada delas. dispostas a enfrentar a indústria e tentar trazer à tona os efeitos negativos que trabalhar com rádio teve nas funcionárias. E a estratégia era uma mistura de advocacia feroz com denúncias e pressão incessante. A NCL abriu caminho para uma batalha jurídica decisiva, mesmo que para algumas essa luta tenha vindo tarde demais. Por exemplo, a NCL colaborou com investigações já abertas em Nova Jersey sobre as queixas de saúde das pintoras, sustentando uma denúncia que levaria a ações jurídicas. E não eram só as atuais funcionárias da US Radium Corporation que estavam se movendo. Grace Fryer queria justiça. Ela levou dois anos inteiros para encontrar um advogado corajoso o suficiente para enfrentar a US Radium Corporation. E ao seu lado, outras trabalhadoras contaminadas se juntaram ao processo. Muitas que não sobreviveram pra ver o veredicto. O julgamento aconteceu só em 1928, seis anos depois dos primeiros sintomas sérios nas antigas empregadas da empresa. E quatro anos depois da Grace ter iniciado a ação legal. No tribunal, a imagem era devastadora. As meninas do rádio que ainda viviam estavam acamadas. Muitas delas já não conseguiam nem andar. Os corpos estavam deformados pela radiação, e nem mesmo Grace conseguia mais se manter de pé. Jornalistas começaram a expor o caso, gerando uma revolta da população contra a US Radio Corporation. A pressão popular era intensa, e ela não podia ser ignorada. A empresa pediu adiamentos sucessivos, na esperança de comprar tempo e tentar fazer a questão ser esquecida, e esperando que as vítimas simplesmente terminassem de morrer sem ver o fim do processo. Quando finalmente as meninas do rádio receberam um acordo, a justiça foi amarga. Apenas 10 mil dólares pra cada uma, que é o equivalente a cerca de 100 mil dólares hoje em dia. E despesas médicas cobertas, mas por tempo limitado. Foram prometidos 600 dólares por ano, mas poucas viveram o suficiente para receber toda a compensação. Para as meninas do rádio, a justiça nunca veio. Após anos de sofrimento e luta, a ciência finalmente ficou mais clara. O rádio se comporta como o cálcio no corpo humano. Ele se infiltra e se acumula nos ossos e dentes silenciosamente. Sempre que as trabalhadoras molhavam o pincel com a boca, elas ingeriam quantidades significativas do elemento, dia após dia, ano após ano. E hoje nós sabemos que elas foram expostas a quantidades de radiação que são milhares de vezes maiores do que a exposição máxima segura. A própria Marie Curie, descobridora do rádio, não escapou dos efeitos dele. Ela morreu em 1934, vítima de doenças causadas pela radiação. A Undark continuou a ser usada até 1968, só que dessa vez em condições mais seguras. E a radiação dessa época deixou marcas que vão muito além de memórias e histórias. Até hoje, os cadernos de laboratório que a Marie Curie usava continuam tão radioativos que eles não podem ser manuseados sem proteção. E com uma meia-vida de 1.600 anos, o rádio que contaminou os funcionários na fábrica ainda brilha no escuro. E fazendo muito esforço pra tentar achar um lado positivo nessa história toda, em 1949 o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei que garantia a indenização pra trabalhadores com doenças ocupacionais. Isso abriu caminho pra regulamentações ainda segurança muitas vezes são escritas com sangue. E principalmente se tratando de radiação, todo cuidado é pouco. Muito obrigado e até a próxima!

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