Você nunca entendeu esse filme
0Tudo que eu tenho nessa vida é a minha coragem e minha palavra e eu nunca abro mão disso, tá entendendo? Em 1983, o mundo conhecia um dos personagens mais icônicos do cinema. E aí, você atende por que nome? Hã? Como seama? Antonio Montana. E você atende por que nome? Um imigrante que chegou nos Estados Unidos sem nada, mas queria absolutamente tudo. E é justamente essa ambição sem limite que cativa muitas pessoas. E o que a vida te reserva, Tony? O mundo e o que ele oferece. Tony Montana é intenso, direto, imprevisível e apesar de todos os absurdos que ele faz, durante o filme você se pega torcendo por ele, admirando e até se identificando com o cara. O que é de certa forma assustador para quem preza por uma harmonia social, porque um personagem desses carismático e inspirador pode facilmente ser levado como um modelo a ser seguido. Tem até uma história que pouca gente sabe, mas esse filme é um remake de uma versão de 1932. E naquela época, o medo de como as pessoas interpretariam essa história era tão grande que censuraram várias cenas, proibiram o filme em diversos lugares dos Estados Unidos e até mudaram o título para Scarfez, a vergonha de uma nação. Para já deixar claro, antes de qualquer coisa, que esse cara não é um herói, mas uma vergonha. E aí, mais de 50 anos depois, veio essa versão de 83, uma versão muito mais livre de toda aquela censura que prejudicou o filme original. Dessa vez o público tinha maior liberdade para tirar suas próprias conclusões. E como sempre acontece, as pessoas naquela pressa para chegar logo em uma resposta para dizer o que é certo e errado, acabaram levando a discussão desse filme para dois extremos. Você vê muita gente que condena o filme por romantizar o crime, por atropelar a ética e a moral da sociedade, enquanto outros vem o oposto, enxergam Tony como um manual de sucesso, um exemplo de como vencer no mundo sujo. Seu filho triunfou, mãe. Ele é o sucesso. Só que quando você julga rápido demais, você não mergulha na complexidade do filme e acaba não entendendo nada. não percebe a grande mensagem por trás dessa história, muito menos as verdades desconfortáveis que ela revela sobre o ser humano e, por que não sobre a sociedade. Eu sempre soube que um dia eu ia vir aqui pros Estados Unidos. O filme começa com Tony Montana chegando nos Estados Unidos. Ele é um dos milhares de cubanos presos e opositores da ditadura de Fidel Castro que deixaram o país nos anos 80. Cuba estava mergulhada na miséria com um regime autoritário que controlava tudo. Eles dizem o tempo todo o que fazer, o que pensar, o que sentir, quer virar um cordeirinho que nem aquela gente toda. Tony não quer ninguém em cima dele, não quer ninguém ditando regras e por isso não respeita a autoridade e não abaixa a cabeça para ninguém. Não importa qual a situação ou quem esteja do outro lado, isso fica bem claro logo na primeira cena do filme, quando ele tá ali passando pelo desconforto de ser interrogado pela polícia logo que pisa nos Estados Unidos. A gente vê ele cercado, sentado, olhando para cima, como um sinal da posição de inferioridade que ele tá naquela situação. Mas sua postura não reflete isso. Ele tá confortável, seguro de si, faz brincadeira, se mostra zero intimidado. Você entende logo ali porque ele saiu de Cuba, mas mais ainda você entende porque ele escolheu os Estados Unidos, a terra da oportunidade, um lugar onde ele pode colocar para fora toda a sua ambição. Tony chega com fome de poder e riqueza. Ele chega junto do seu parceiro Manny, que é quem consegue todo o esquema dos green cards e que abre a porta para eles entrarem no mundo do tráfico. Mas, apesar de ser um cara fiel e muito útil nesse começo, ele é mais inocente, menos cabeça, mais sonhador, alguém que pensa em mulheres, em viver, curtir. Tony não. E é por isso que, apesar de serem sócios, desde o início, você já sabe quem manda ali. É ele quem tá no comando. Tony sabe exatamente o que precisa fazer para subir nesse jogo. Para ele é simples. Quem tem dinheiro e poder pode tudo. Nesse país você tem que ganhar dinheiro primeiro. Você ganha o dinheiro, você ganha o poder. Depois que ganhar o poder, aí você ganha a mulher. Essa é sua filosofia de vida. Tony não enxerga nada que vá além do material. Esse é o único mundo que ele reconhece. É tudo que existe para ele. Basta olhar pra cena que ele resolve fazer uma visita surpresa pra sua mãe. Essa cena é emblemática. Depois de 5 anos completamente sumido, sem ligar, sem dar notícia, sem nada, ele achava que reaparecendo lá como um homem de sucesso, oferecendo dinheiro e joias, tudo seria perdoado. Mas não é bem o que acontece. Acha que pode me comprar com essas joias? Não é assim que eu sou, Antônio Tony não entende a dor da mãe, não entende o que ela passou todos esses anos, completamente mergulhada no mundo material. Ele acha que tudo se resolve com dinheiro. Na cabeça dele, ele tá oferecendo o que tem de melhor nesse mundo, a coisa mais importante. E por isso, fica sem entender porque a mãe reage desse jeito. Leva a droga desse dinheiro com você. Mas aquilo também nem mexe com ele. Ele sai dali e segue sua vida. Sua maneira fria, crua e objetiva de ver o mundo é o que o blinda de muita coisa. Tony parece ser aquele cara que lá no fundo sempre soube que estava destinado a coisas grandes e por isso mesmo quando ele ainda era um zé ninguém ele não se deixava afetar nas várias vezes que recebiam. Não sai fora seu babaca. quando era humilhado ou até quando tentavam diminuí-lo durante sua escalada pro topo. Mesmo que eu estivesse cega, desesperada, com fome e morrendo de tesão numa ilha deserta, você seria o último ser a me [ __ ] É bem aquela coisa de você já viver uma realidade antes mesmo dela se materializar, de você atrair as coisas pela forma como age. Tony parecia já est sintonizado com a figura poderosa antes mesmo de ter algum poder. Só que, por mais que essa vibração e esse comportamento tenham funcionado muito bem pros seus negócios, vemos ao mesmo tempo como isso vai aos poucos destruindo tudo na sua vida pessoal. Tá? Você é um grande babaca, Tony, seu merda. Assasso, será que você não vê o que você virou, Tony? É só a gente olhar pr as três figuras centrais da vida dele. Euvira, Manny e Dina. Eu vira surge na história logo no início da trajetória de Tony no mundo do tráfego, quando ele ainda era só um capanga que fazia o serviço sujo para Frank, o todo poderoso, dono de uma organização criminosa que movimentava muita grana. Euvira é a mulher desse cara. Naquele momento da história, Tony é um [ __ ] qualquer para Euvira, alguém que tá lá embaixo na hierarquia social. Mas isso não é recíproco. Desde a primeira vez que ela aparece, Tony já olha como se ela fosse dele, nem disfarça, encara ela na cara dura, bem na frente do seu chefe. Ele não tá nem aí. Vai para cima mesmo. Não perde tempo com charme, com joguinho, vai direto ao ponto. Ele vê tudo de forma prática. Ele sabe o que ela quer. Sabe que ela só tá ali pelo status, pela grana. E também sabe que logo vai ser ele quem vai poder oferecer tudo isso. Então, antes mesmo de conquistá-la, ele já fala de casamento, de filhos. É o seguinte, quero que se case comigo. Quero que seja a mãe dos meus filhos. Eu com Manny é a mesma coisa. Ele também tem esse jeitão direto e objetivo. Mesmo sendo praticamente seu irmão, Tony não mostra muito apego emocional. Ele praticamente usa Manny como ferramenta. Seja para fazer o trabalho sujo, para protegê-lo. Em nenhum momento vemos Tony tratá-lo como igual. É sempre ele quem tá no comando. Eu sou seu parceiro, não sou? Se você não acreditar em mim com esse tipo de coisa, em que [ __ ] vai acreditar? Parceiro Júlior. Com sua irmã Dina, o controle é ainda mais evidente. Ele, além de se colocar na posição do irmão mais velho protetor, é o provedor da vida dela. E muita gente pode achar isso nobre da parte dele, mas na prática o que acontece é que ele controla completamente a vida dela, não deixa ninguém tocá-la, não deixa ela ter sua liberdade, suas escolhas e acaba sufocando a vida da irmã. E o ponto é que não importa com quem seja, Tony sempre se mostra frio e sem muito apego emocional nos seus relacionamentos. Ele vê as pessoas mais como ferramentas para que ele consiga o que quer. Enquanto elas servem, ótimo. Agora, se não servem mais, ele descarta sem olhar para trás. O que, de um ponto de vista de negócios, acaba sendo muito produtivo para ele. Mas se tem um erro que Tony comete em termos de negócios, é ignorar o conselho do seu primeiro chefe sobre como durar nesse ramo sujo. Ele diz para ser discreto, para evitar chamar muita atenção e para não ficar chapado com seu próprio suprimento. Mas você sabe como Tony é. Ele nunca foi um cara de seguir regras. É óbvio que ele não ouviria. Ele queria absolutamente tudo que o mundo pudesse oferecer. Aliás, é mais ou menos essa frase que aparece algumas vezes ao longo do filme: “The World is Yours, o mundo é seu.” A primeira vez que ela aparece é na icônica cena dele olhando para um repelim. Ele acaba de matar seu chefe, assume todo o negócio e ainda vai até a casa dele e chamavira para ir embora com ele. É um momento onde a vida parece sorrir para ele, o mundo enfim nas suas mãos. E logo na sequência vemos sua ascensão meteórica. Vemos Tony virando o cara, ganhando grana infinita, construindo seu império, sua mansão, seu time, seus negócios. Ele finalmente se casa com Elvira. Está tudo se realizando para ele. E de novo, nesse momento, aquela mensagem aparece bem ali no fundo num objeto de decoração da sua mansão. E o que aos poucos vai ficando mais evidente é que enquanto os negócios explodiram, a relação com as três figuras centrais da sua vida foram pro saco. Primeiro com sua esposa, que não aguenta mais um homem que só pensa em negócios e dinheiro. Dá para parar de falar de dinheiro? Que saco, Tony. Ela percebe que se relacionar com um cara que só pensa nele e que quer controlar tudo ao seu redor é insustentável. E então ela pula fora e nunca mais volta. Eu vira é a primeira. Depois vemos, que sempre foi apaixonado por Dina, mas que por medo de Tony nunca teve coragem de assumir. Por isso, eles se casaram escondidos na tentativa de finalmente viver algo que os dois sentiam há muito tempo. Mas quando Tony descobre, num momento de fúria, sem nem pensar nem ouvir explicações, ele mete bala no único cara que estava com ele desde o início, seu irmão da vida. Ele acaba com a vida de Manny e destrói a da irmã por tabela. E ali cai a ficha. Tony conseguiu, criou seu próprio mundo, fez tudo do seu jeito, mas tentou controlar tanto as pessoas e tudo à sua volta que acabou sozinho. Destruiu as três relações mais importantes que tinha. Perdeu o amor, a amizade e a família. Tudo que sobrou foi ele e o império vazio que construiu. E aí vamos pra parte final do filme, onde vemos ele sentado sozinho, cercado de luxo e de drogas, mas completamente desolado. Parece que pela primeira vez ele tá sentindo o peso das escolhas que fez. E aí, nem dá para colocar a cena aqui, senão vão bloquear meu vídeo. Mas ele pega e dá uma fungada absurda num amontoado de sal, porque parece que essa é a única forma de continuar de pé, a única forma de conseguir lidar com a realidade que criou. E enquanto ele tá ali amargando sua derrota, vemos sua mansão sendo invadida por dezenas de homens armados. Mandaram matar Tony. E o motivo? Ele tinha sido encarregado de eliminar um inimigo político do cartel. Só que falhou na missão. No momento de explodir o carro e eliminar o cara, ele não conseguiu porque a esposa e os filhos da vítima estavam dentro do carro e ele se recusa a matar uma criança. Eu falei criança e mulher não. Provavelmente esse é o único momento que ele demonstra algum tipo de limite no filme. Mostra ter coração. E a ironia é que a única atitude moral de Tony em toda a história é justamente a que lhe condena. Mas Tony se recusa a fugir ou se esconder. Mesmo em desvantagem, ele decide lutar. E aqui vemos uma das melhores e mais violentas cenas do filme. Ele encara todos de frente, daquele jeito bem doidão, entupido de sal até a alma, fazendo questão de se mostrar poderoso, de se mostrar indestrutível. Ele toma tiro para [ __ ] e continua de pé, continua gritando. Naquele momento ele nem se importava mais pela sua vida. A única coisa que ele parece se importar é seu ego, sua imagem. E então vem o tiro final. O corpo de Tony despenca da sacada e mais uma vez lá está ela, a bendita frase que o perseguiu durante toda sua ascensão, o lema da sua jornada. E é engraçado porque essa frase é o slogan de uma companhia aérea, a Pen American Airlines. É só uma simples campanha de marketing. O mundo é seu. Quer dizer que essa companhia aérea vai te fazer viajar ao mundo, explorar, conhecer novos lugares. Só que quando Tony vê aquilo brilhando no céu pela primeira vez, logo após de glória, ele interpreta com sua mente gananciosa e ambiciosa. Para ele, aquilo era um sinal, um recado do universo. Vai lá, conquista tudo. O mundo é teu, campeão. Ele basicamente pega uma mensagem genérica de marketing e distorce para justificar seus próprios desejos. Aquilo vira sua marca, vira até decoração na sua mansão. E a aparição dessa frase no começo, no meio e no fim da escalada de Tony é uma provocação do diretor para mostrar que Tony entendeu tudo errado. Porque essa frase nunca foi uma bênção, era um alerta. Um alerta de que quando o mundo é seu, você não tá só assumindo a parte boa, seus prazeres, luxos e facilidades. Você tá assumindo o pacote completo, o peso de carregar tudo isso. Então vemos Tony mais poderoso do que nunca, mas ao mesmo tempo paranoico e preocupado como nunca com sua segurança. Vemos ele rodeado de pessoas, de capangas, mas ele nunca se sentiu tão só. Ele tinha tudo, mas nunca antes se sentiu tão vazio. Chegar no topo dessa forma tem seu preço. E Tony talvez só tenha percebido isso pouco antes de morrer. O mais bizarro é que uma personagem que ninguém dá muita atenção já previa isso desde o início. A mãe de Tony. Ela tentou afastá-lo da irmã, tentou impedir que ela fosse arrastada junto. Eu não quero mais você nessa casa. Sai de perto da Gina. mas não conseguiu. No final, tudo que ela temia aconteceu. A mãe fez diferente. Ela rejeitou essa vida. Quando Tony oferece dinheiro, ela recusa na hora. Não porque não precisasse de dinheiro, mas porque não queria nenhuma ligação com aquele mundo. Ela sabia muito bem o tipo de homem que o filho tinha virado e temia o que o mundo era capaz de fazer com essas pessoas que se deixavam levar totalmente pelo desejo, pela ambição e pelo poder. Por isso, ela escolhe a simplicidade. Prefere se manter fiel à sua religião, uma vida arregrada, sem riscos, porque é mais fácil se manter íntegro assim, vivendo longe da tentação. E aí a gente vê o contraste entre mãe e filho. Tony representa o excesso, o poder, a ausência total de regras. A mãe representa o controle, a renúncia, o apego à moral religiosa. Dois lados opostos, duas formas diferentes de lidar com a vida. E é bem nesse ponto que muita gente se apressa e conclui: “Ah, então a mãe representa o certo, a virtude, o que deveríamos ser.” Só que essa conclusão é infantil. Ela ignora a complexidade da vida, porque a vida não é um teste moral, não é uma escolha entre ter tudo ou renunciar a tudo. A verdade pode ser muito mais complexa que isso, porque quando a tentação aparece, muita gente que se desboa se corrompe, revelando que o que faltava era só uma oportunidade para ceder. Dina teve essa oportunidade, cresceu com a mãe, mas escolheu o irmão, porque o mundo de Tony era mais fascinante, mais excitante, mais atrativo. E o mais fácil para quem tá de fora é olhar para quem escolhe esse caminho e logo apontar o dedo. Essas são as pessoas ruins. Eu não sou assim. Precisam de gente como eu. Precisam de gente como eu para poder apontar e dizer: “Aquele é um cara mau”. É muito mais fácil dizer que Tony é o problema, nos convencer de que a gente jamais faria igual. Como se dizer, “Eu não sou como ele” fosse suficiente. Fingir que não sente desejo, que não tem vontade, que não pensa besteira, que não tem raiva, inveja, ego, vaidade, mas se engana quem acha que ser bom é nunca ter sentido essas coisas. Porque a virtude não é a ausência de desejo, é ter o desejo inteiro na sua frente e ainda assim escolher não ser dominado por ele. Tony não teve essa força, quis tudo, quis o mundo, quis ser Deus e quanto mais achava que controlava tudo, mais se afastava daquilo que dava sentido à sua vida. E esse foi o seu erro fatal, achar que liberdade era fazer tudo, ter tudo, ser tudo. Mas ele não virou livre, virou refém. refém do próprio desejo. E dá para entender de onde vem essa cabeça. Tony fugiu de um regime onde não podia nada, onde já diziam para ele o que pensar, o que falar, o que sonhar. Então, quando chegou num lugar onde tudo era possível, ele se deixou levar pelo desejo, quis compensar a repressão com excesso, foi pro outro extremo. Só que quando ele finalmente conquista tudo que sempre quis, ele percebe que o desejo o consumiu completamente, que ele se fechou para todo o resto, arriscou toda a sua vida por essa liberdade ilusória que ele tanto sonhava. E aí quando ele olha pro lado, não sobrou mais nada, não tem mais nada poderoso suficiente para ajudá-lo a reencontrar algum sentido. E talvez ali naqueles últimos momentos, sozinho, cercado por tudo que conquistou, ele tenha notado que o que sustenta a vida não é o quanto você conquista. é o que ainda te mantém de pé quando tudo ao seu redor desmorona. Tem boa noite ao caram. [Música] Se você gosta dos meus vídeos, venha conhecer minha série, A chave das Três Dimensões. Ela no momento, tá vindo com minha outra série de poder e manipulação de graça. Nesse vídeo da esquerda explico mais sobre a chave e no da direita te mostro um trecho grátis de um dos episódios da série de poder para ver se você se interessa. [Música]









